25 de dezembro de 2014 | 03h00
Foi, talvez, a mais bela cena do ano. Vale sozinha por uma definição do cinema – melodia do olhar, como dizia Nicholas Ray. No momento culminante do combate contra os orcs em O Hobbit – A Batalha dos Cinco Exércitos, Kili, mortalmente atingido, troca um derradeiro olhar com Tauriel. O anão e a elfa. Um romance impossível, mas verdadeiro, real. Peter Jackson conseguiu, de novo. Fez um épico grandioso, espetacular, mas, como em toda a série O Senhor dos Anéis, o que importa, no Hobbit, é o movimento interior dos personagens. O amor, a honra. O companheirismo.
Mas O Hobbit não entra na lista dos cinco mais do ano, liderada pelo brasileiro Praia do Futuro. Karim Aïnouz também conseguiu. Pegou Wagner Moura, e no imaginário do espectador brasileiro, ele é o eterno Capitão Nascimento. Fez dele o bombeiro gay que deserta de tudo – da família, da praia, do Brasil – para viver sua história de amor, proibido, mas real, na distante e gelada Alemanha. Corpos masculinos, o desejo dos homens. E a desconstrução do herói. A entrada em cena de Jesuíta Barbosa faz o filme voar mais alto. Para ele, o irmão era o Aquaman. Decepção, aceitação. E um novo recomeço, agora na praia sem mar.
Nem o herói é perfeito em 'Caçada Mortal'
Foi um ano de grandes filmes – brasileiros, internacionais. Muitos diretores quiseram adaptar A Montanha Mágica, de Thomas Mann, mas quem logrou o feito, informalmente, foi o japonês Hayao Miyazaki em Vidas ao Vento, a mais bela animação do ano – e a mais bela desde Ratatouille, com sua cena ‘proustiana’ do crítico. O Brasil não ficou entre os nove pré-indicados para o Oscar, mas Hoje Eu Quero Voltar Sozinho está em boa companhia. O longa de Daniel Ribeiro não foi selecionado com Mommy, de Xavier Dolan, e os dois estão entre os melhores de 2014. Todos esses filmes e mais O Grande Hotel Budapeste, do ‘excêntrico’ Wes Anderson, falam de família – a de sangue ou a que escolhemos –, de exclusão e inclusão, de preconceito e superação.
O público continuou preferindo as comédias no cinema brasileiro e um grande clamor se formou, quase no fim do ano, quando mais da metade do circuito exibidor foi ocupada por um só filme – o blockbuster Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1, que, rapidamente, no primeiro fim de semana, fez 1,9 milhão de espectadores. Como não? O filme estreou em mais de 1.300 salas. E nem é bom. Bem-vindos à economia de mercado. O problema é que bens culturais são diferenciados. É preciso colocar um freio à ocupação indiscriminada de nossas telas. Com mais salas disponíveis, vai aumentar a frequência do cinema brasileiro? Os melhores nacionais do ano registraram números pífios. Ao drama, a certos dramas, o público continua preferindo o riso. Daqui a pouco, os críticos, que brigam pelo espaço nas salas, estarão insultando o público. Se os números não melhorarem, em outro quadro, a culpa não será mais de Hollywood. De quem, então?
Anne Dorval (Mommy) foi a melhor atriz do ano, Jesuíta Barbosa (Praia do Futuro), o melhor ator. Não estarão no Oscar. A verdade é que o mundo mudou, e o cinema também. As novas tecnologias estão interferindo na estética, não são apenas ferramentas auxiliares. Há uma voz da periferia que quer ser ouvida. Filmes como A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa, e Branco Sai Preto Fica, de Adirley Queirós, mudariam o equilíbrio da lista de melhores, se ganhassem espaço – mas o primeiro já está disponível para download na rede. Isso é considerado estreia? O problema será fazer com que menos Jogos Vorazes nas telas favoreçam mais Tigres. O que precisa mudar é a relação – nossa – com o cinema brasileiro. Ele já tem a nossa cara, mas continuamos – o grosso do público – não querendo nos refletir/identificar nele, ou com ele. Enquanto isso não ocorrer, todas as medidas serão paliativas. E não será a cota (imposta) de tela a resolver o problema.
Nessa despedida de 2014, é bom fechar os olhos e deixar passar, no imaginário, os grandes momentos de cinema do ano que se encerra. O (re)encontro de Jesuíta Barbosa e Wagner Moura na saída daquele elevador, em Praia do Futuro. A mudança de ângulo, quando o garoto cego, que não pode ver, ‘ouve’ a chegada do colega por quem se apaixonará em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. Toda a cena da fuga da instituição em Mommy. Qualquer diálogo do mensageiro com M. Gustave – e Ralph Fiennes, sim, poderá estar no Oscar –, no Hotel Budapeste. E o vento como personagem de Miyazaki. A visceral troca de olhares de Kili e Tauriel. Um dia, quando tudo isso tiver passado, esses momentos ficarão.
De Karim Ainouz. O Capitão Nascimento perde sua alma mas reencontra o afeto do irmão. Sublime desconstrução do heroísmo. Grande Jesuíta Barbosa.
De Hayao Miyazaki. A Montanha Mágica em versão japonesa e animada. Voar, ao contrário do que dizia Robert Altman, não é só com os pássaros.
De Xavier Dolan. 25 anos, cinco filmes. Uma obra cada vez melhor e mais consistente. Se Dolan começou querendo matar a mãe, aqui lhe confere a revanche.
De Wes Anderson. Num ano com tantos filmes sobre família de sangue, o excêntrico Anderson filma a do coração. M. Gustave. Ralph Fiennes bem poderia ir para o Oscar.
De Christopher Nolan. A sombra de Escher. Os labirintos do tempo e do espaço. Um pai eternamente jovem reencontra a filha idosa. A sensação é de estar diante do monolito negro de Stanley Kubrick.
De Philippe Garrel. Cenas de um casamento francês. Ela quer mais do que ele pode lhe dar. Só o amor não basta. Os 'Garreis', pai e filho, fazem a autópsia de uma relação.
De Daniel Ribeiro. O garoto cego e gay sai do armário. Mais do que um brado contra o preconceito, um brado pelo cinema. Como filmar o que os olhos não veem (o sentimento)?
De Cristiano Burlan. Como Jesuíta Barbosa, Burlan parte em busca do irmão que foi morto. Um filme de amor. Como todo documentário, uma ficção - mas toda ficção não será também um documentário?
De David Fincher. Cenas de um casamento americano. A versão dele, a dela e a do diretor, um documentário crítico da 'América'.
De Lasse Hallstrom. Houve muitos filmes de gastronomia no ano. Esse foi o melhor. Um pouco o Ratatouille de carne e osso. O imigrante que dá a volta por cima na tradição. Helen Mirren, Madame Mallory, rainha como sempre. Maravilhosa
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