Perfil de Sganzerla, por Luiz Zanin Oricchio

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Por Agencia Estado
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Para entender o cinema de Rogério Sganzerla é preciso contextualizá-lo. Fim da década de 60, com o fechamento do regime, a politização do Cinema Novo parecia com os dias contados. Embora Glauber Rocha já tivesse feito um filme como Câncer, bastante aparentado ao que viria depois, foi Rogério mesmo quem deu início a um estilo, ou escola, que poderia ser chamado de "marginal", não fosse esse título repudiado pelos próprios diretores. O epicentro dessa tendência, no caso paulistano, seria a chamada Boca do Lixo. Ou seja, Rua do Triunfo e imediações das estações da Luz e Julio Prestes. Era lá que um grupo de jovens como Carlos Reichenbach, Julio Callasso, João Calegaro se reunia e pensava o cinema em termos diferentes. Inspirados pela popularidade intuitiva dos filmes de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, mas também pelo trabalho seminal de Ozualdo Candeias, cujo filme se chama A Margem, pensaram numa estilística desbocada, subversiva, nada diretiva em termos políticos e que flertava com o lirismo e mau gosto. Desse leque de influências, e claro, da genialidade de Sganzerla, nasce um filme de exceção como O Bandido da Luz Vermelha. Rogério chamou-o de "um faroeste do Terceiro Mundo". Inspirou-se em um personagem real, João Acácio Pereira da Costa, o tal bandido, que se transformou na sensação das páginas policiais daquela época. O "Luz", como o chamavam, ganhara o apelido de Caryl Chessman, americano condenado à morte e que conseguira vários adiamentos escrevendo livros como A Lei Quer Que Eu Morra. Terminou executado na câmara de gás. Quando apareceu um similar no Brasil, o apelido foi adotado, numa operação antropofágica à maneira de Oswald de Andrade. O filme é uma explosão de raiva. Contém frases emblemáticas, pronunciadas pelo bandido, do tipo: "Quem não pode nada tem mais é que se esculhambar." Ou: "Posso dizer de boca cheia: eu sou um boçal." O clima é esse. No desespero da inação política, o negócio é a piração, a desordem, o grito inarticulado. Imenso era o talento empregado na expressão dessa ruptura. Mas claro: limitar esse filme complexo à sua dimensão política é empobrecê-lo. Ele é isso, mas também mais do que isso. Em A Mulher de Todos, Rogério aprofundou seu rigor de cineasta-cinéfilo, mas nos seguintes contemplou mais a ruptura do que a consistência. Talvez sentisse que estava se afastando de uma zona de comunicação plausível com o público, e tentou suturar (no sentido psicanalítico) essa ferida valendo-se de Welles. Essa relação com o cineasta americano estabilizou a obra de Sganzerla. Talvez a tenha limitado, mas em seus filmes sobre o assunto pelo menos pôde aprofundar uma metáfora. Sentia que a sua própria obra tinha similaridade com a trajetória de Welles, e ambas as biografias podiam ser resumidas numa espécie de luta entre a civilização e a tendência à barbárie. É o que dá o tom também a O Signo do Caos, seu último trabalho. Irregular, esse filme contém no entanto algumas das mais marcantes imagens do cinema brasileiro contemporâneo. É um belo e imperfeito testamento.

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