Para Wong Kar-wai, chineses não dizem "eu te amo"

Diretor do filme Amor à Flor da Pele diz, em entrevista à Agência Estado, que os chineses sentem-se embaraçados com a expressão e que seu filme, sucesso espontâneo nos cinemas nacionais, é sobre um segredo

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Por Agencia Estado
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Os óculos, sempre muito escuros, impedem que se note a inquietação de seus olhos e suscitam a imaginação, o que logo revela uma de suas características fundamentais - mais que a realidade dos fatos, a sugestão interessa mais ao cineasta chinês Wong Kar-wai. Foi o que o motivou, por exemplo, a cortar uma cena que explicitaria a relação extraconjugal do casal de Amor à Flor da Pele, seu sétimo filme, em cartaz em São Paulo e no Rio. Na verdade, foi também o que o convenceu a alongar as filmagens por 15 meses, produzindo inúmeras cenas que seriam depois desprezadas na mesa de edição - uma obsessiva busca pela melhor combinação de imagens. "Como Amor à Flor da Pele trata de um segredo, fiz o possível para tratar a história como tal", comenta Kar-wai, em entrevista, por e-mail. O filme trata de um amor proibido que está arrebatando o público brasileiro, numa bem-sucedida corrente de boca a boca. Em 1961, em Hong Kong, Chow (Tony Leung), editor-chefe de um jornal local, muda-se com a mulher para uma pensão populosa, para onde também vai a secretária Su Li-zhen (Maggie Cheung Man-yuk) e o marido. Logo, eles descobrem que seus companheiros estão tendo um caso, o que torna também suspeita a sua relação. Kar-wai desenvolve a história com o uso de elipses, sugerindo por meio de olhares e frases incompletas. Uma série de dúvidas permeia a história ao mesmo tempo em que apresenta um amor sofrido, mantido por meio de silêncios, gestos e olhares. A sutileza garantiu a Tony Leung o prêmio de melhor ator em Cannes no ano passado, o mesmo festival que já premiara Kar-wai em 1997 pela direção de Felizes Juntos. Nascido em Xangai em 1958 e criado em Hong Kong a partir dos 5 anos, Kar-wai teve uma juventude solitária, dedicando seu tempo entre literatura russa e acompanhar a mãe nas matinês de cinema, principalmente para assistir aos faroestes. Sem amigos, passava o resto do dia escutando rádio. Tal imersão cultural (cinema e rádio) permitiu que descobrisse elementos da cultura pop, que resultou na fluente combinação de elementos orientais e ocidentais em seus filmes. Agência Estado - O governo chinês exige analisar o roteiro antes do início da produção, a fim de monitorá-lo. Tais pedidos são especialmente um empecilho para o senhor, que prefere iniciar a filmagem sem um roteiro definitivo e improvisar ao longo do trabalho. Como foi com Amor à Flor da Pele? Wong Kar-wai - Hong Kong e China têm diferentes formas de censurar os roteiros e de monitorar as produções. Assim, decidimos filmar Amor à Flor da Pele inteiramente em Hong Kong e Bangcoc; portanto, não tivemos nenhuma dificuldade com o governo chinês. Caso contrário, seria praticamente impossível realizar o filme como eu pretendia. Seus filmes tratam normalmente de problemas individuais. Praticamente não há um senso de sociedade ou familiar em sua obra, nenhuma base estruturada. Por quê? Sociedade e família consistem de indivíduos. A história é centrada em alguns seres em particular, mas não significa que eles não têm famílias - apenas que tais famílias não estão no centro da história que é contada. O filme trata de duas pessoas que foram traídas por seus parceiros, mas, ao tentar entender o que aconteceu, percebem que também eles podem ser traidores. Por que o senhor quis contar uma história de amor por meio de segredos? Vamos colocar da seguinte maneira: Amor à Flor da Pele é sobre segredos, mas acontece de ser também uma história de amor. A relação entre Chow e Li-zhen é retratada apenas por conversas tensas: eles nunca dizem "Eu te amo". Por quê? Os chineses acreditam que dizer "Eu te amo" é embaraçoso. Trata-se de um povo conservador, que tem sua própria forma de expressar seus sentimentos, melhor que utilizando palavras. Os chineses expressam "Eu te amo" por meio de gestos e comportamentos, mais que pela linguagem. Para o senhor, qual a importância das cores em um filme? Sou um diretor. Faço filmes. Acredito que deve haver uma centena de respostas para esta questão. Diria então que pensar em termos de cores é uma ação instintiva. Também as refeições parecem ser muito importantes em seus filmes. Comida é a coisa mais básica da vida. Considero tão essencial como dormir, mas isso não é preciso ser mostrado nos filmes. Agora, quando duas ou mais pessoas se encontram para comer, uma infinidade de situações pode surgir, o que é estimulante para uma narrativa. Outra referência que se destaca é a música, especialmente a latino-americana. Algum motivo especial? A seleção de músicas foi puramente pessoal: escolhi as que me atraem mais e que são de diferentes estilos. A opção por canções latinas se explica porque cresci ouvindo muito diversas dessas músicas. Originalmente, o filme se chamaria Summer in Beijing (Verão em Pequim) e durante um ano o senhor manteve o título. O que provocou a mudança para Amor à Flor da Pele? Summer in Beijing deveria ser rodado em Pequim e trataria do povo desta cidade. Mas, os problemas com o governo chinês, que falamos na primeira pergunta, impediram. Mais tarde, com a decisão de filmar em Hong Kong, a estrutura do roteiro também foi alterada quando li um conto de um escritor japonês (Sakyo Komatsu), que conta a história de uma mulher que descobre o amor do marido por uma vizinha também casada. Gostei da história, que se tornou a base para a nova versão do filme, que também ganhou novo título. Para o senhor, qual é a real importância da montagem em um filme? Trata-se do último processo de uma filmagem. Durante esse período, há um volume muito grande de criatividade que pode ser colocado na fita. Também os erros podem ser alterados e trocados, mas, uma vez que a edição é concluída, o filme nasceu e adquiriu vida própria. Ninguém mais pode alterá-lo. Mas, quando o senhor revê seus filmes, não sente uma vontade de mudá-los? Todo filme representa seu estado de espírito naquele momento. É a mesma coisa que admirar uma foto antiga em um álbum. Você se vê em um determinado período da vida. Não se pode mudar. O que você pensava antes pode ou não estar correto, mas o fato é que você tem de admitir que está feito. Também constatar que determinada coisa poderia ter sido melhor não significa que você progrediu. Na verdade, meus filmes estão muito interligados, mesmo que isso não seja perceptível. Acho que estou fazendo um longo filme, construído por todos que já rodei: cada um seria uma cena desse filme que ainda não terminei. E nem sei quando vou terminar. Há algum filme que o senhor realmente gostaria de fazer? Muitos. Nem saberia especificá-los. Quando filmava Felizes Juntos na Argentina, o senhor encontrou-se com o jogador Maradona. Como foi? Ele o reconheceu? Estávamos filmando no estádio do Boca Juniors quando ele apareceu. Na verdade, foi irônico, pois eu não sabia quem ele era e também ele não sabia nada sobre mim. Éramos ilustres desconhecidos um para o outro. De que se trata seu novo projeto? Chama-se 2046 e trata de dois pares de agentes que estão envolvidos em uma luta de vida e morte em Hong Kong. Nessa época, as pessoas não são identificadas por nomes, mas por números. 2046 não representa apenas um ano, mas também um código e uma assinatura. Amor à Flor da Pele - Direção de Wong Kar-wai. Hong Kong-Fr/2000. Duração: 98 minutos. 14 anos.

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