Para especialista, longa de cunho racista tem importância histórica

Professor Melvyn Stokes destaca 'O Nascimento de uma Nação' pela contraofensiva dos movimentos negros

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Por João Villaverde e BRASÍLIA
Atualização:

A base para os movimentos populares de luta pela afirmação dos negros nos Estados Unidos é a manifestação organizada em diversas capitais americanas há 100 anos, como reação ao lançamento nos cinemas de O Nascimento de uma Nação. Essa é a tese do professor inglês Melvyn Stokes, um dos maiores especialistas em história social do cinema do mundo.

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Em entrevista exclusiva ao Estado, Stokes, que é doutor e professor da Universidade de Londres, afirmou que o filme tem uma importância histórica inigualável, não apenas por seus feitos dentro da arte (ter sido o início do domínio de Hollywood sobre o mundo), mas principalmente por conta da contraofensiva dos movimentos negros.

"Em Boston, naquele ano, houve uma grande manifestação popular, que aumentou a conscientização da sociedade sobre o problema do racismo. Isso por causa de um filme! Foi o início da luta negra nos EUA, que evoluiria até o auge, 50 anos mais tarde, com o movimento liderado por Martin Luther King", disse Stokes.

Stokes contou também que o filme fez muito sucesso na América Latina, apesar do racismo do longa, porque tratava-se de um grande acontecimento cultural.

Leia a seguir a entrevista concedida ao Estado por telefone.

Como "O Nascimento de uma Nação" chega aos 100 anos?

Ter um presidente negro na Casa Branca, neste momento, mostra o quanto a sociedade americana e mundial avançou nesse último século. Quando o filme foi lançado, em 1915, ele foi exibido dentro da Casa Branca, para o então presidente Woodrow Wilson, que era branco e integrante da elite americana. As coisas mudaram muito e o cinema, com os avanços técnicos criados naquele momento, e a própria polêmica que tomou o filme, ganhou a forma como ele é percebido até hoje.

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A Netflix americana colocou o filme a disposição dos assinantes, no início desse ano, e as reações nas redes sociais foram muito grandes. Até hoje o filme é muito criticado.

Onde ele é exibido há grandes manifestações. Em 2004, um cinema em Los Angeles informou que exibiria o filme. Houve ameaças anônimas de que o local seria queimado se o filme fosse exibido. Quando ele entrou na lista de filmes de importância histórica e que deveriam ser guardados na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em 1992, também houve enorme revolta. Isso é natural, porque o filme é, de fato, extremamente racista. É muito difícil dissociar a importância que ele tem para o cinema mundial e para Hollywood, em particular, por seus avanços técnicos e de linguagem, da questão do racismo. Os americanos até hoje convivem com questões sociais muito complexas.

O lamentável episódio de Ferguson é um exemplo, não?

Exatamente. Os crimes de ódio racial, como o policial branco que assassinou o jovem negro em Ferguson no ano passado, ainda existem por lá. Então nesse contexto, apesar dos avanços, uma exibição de O Nascimento de uma Nação é sempre algo delicado.

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Como o filme foi recebido em 1915?

De duas formas: havia uma sensação geral de que se tratava de um grande acontecimento cultural, porque ele é o primeiro grande longa metragem nos Estados Unidos e isso é inegável. Mas foi igualmente importante a manifestação contrária ao filme. Houve muitos, muitos tumultos. Em Boston, naquele ano, houve uma grande manifestação popular, que aumentou a conscientização da sociedade sobre o problema do racismo. Isso por causa de um filme! Foi o início da luta negra nos EUA, que evoluiria até o auge, 50 anos mais tarde, com o movimento liderado por Martin Luther King.

A primeira grande polêmica da história do cinema, então?

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Exatamente. Griffith usou todas as técnicas que ele mesmo tinha desenvolvido nos anos anteriores e incorporou muitos avanços do cinema italiano e francês, que tinha sido dominante do momento em que o cinema foi criado, em 1895, até justamente 1914, um ano antes de O Nascimento de uma Nação, quando a Europa entra em guerra. O caminho estava aberto para o cinema americano e este filme foi o início. Se você assistisse ao filme em 1915 provavelmente seria em um grande teatro, em capitais grandes, com uma orquestra completa interpretando a trilha sonora. Foi, aliás, o primeiro filme americano a ter uma trilha própria. De repente, o cinema estava virando arte. O público foi completamente atiçado pelo filme. Mas, apesar de toda a importância, continuo vendo de forma muito crítica: o filme é muito racista.

Ele já tinha feito mais de 300 filmes naquele momento, antes de começar a fazer longas metragens. Depois de 1915, ainda faria 10 filmes longos. Nem antes e nem depois Griffith foi racista. O que explica "O Nascimento de uma Nação"?

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STOKES: Griffith era um sulista, filho de uma família extremamente conservadora e rural, cheias de preconceitos. Seu pai foi combatente da Guerra Civil americana e a família sempre carregou a mágoa da derrota para o Norte. Griffith nasceu em 1875, era um homem do século XIX desenvolvendo uma arte que é por excelência do século XX. Em "O Nascimento de uma Nação" quis fazer um filme grandioso, histórico, e deu seu lado da história. A polêmica foi tão grande, dado o racismo, que ele tentou de alguma forma se desculpar. Seu filme seguinte, Intolerância (1916), seria isso.

Como foi a recepção no resto do mundo?

Ele saiu em meio à Primeira Guerra Mundial e na Europa, os soldados eram brancos e negros. Havia uma convivência que quebrou barreiras raciais. O filme foi proibido na França, inclusive. Somente seria lançado sete anos depois, em 1923, e mesmo então foi cercado de polêmica e manifestações. Na Alemanha ele também só chegaria na década de 1920. Na Inglaterra o filme saiu em setembro de 1915 e fez muito sucesso. Também foi assim na América Latina. No Brasil, o filme foi exibido para os muito ricos, com ingressos caros.

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