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Oscar 2022: Em 'Ataque dos Cães', Jane Campion examina a masculinidade tóxica

Ator Benedict Cumberbatch comenta sobre a forma sensível e crua com que diretora conduziu o filme

Por Mariane Morisawa
Atualização:

À primeira vista, a escolha de Jane Campion de filmar Ataque dos Cães, sobre um bruto e cruel caubói nos Estados Unidos dos anos 1920, parece inusitada. Todos os longas-metragens da primeira mulher a ganhar a Palma de Ouro - por O Piano (1993) - e de uma das sete cineastas do sexo feminino a concorrer ao Oscar de direção - também por O Piano e agora por Ataque dos Cães -, foram centrados em mulheres, de Sweetie (1989), sobre uma jovem em família disfuncional, a Brilho de uma Paixão (2009), sobre Fanny Brawne, noiva e musa do poeta John Keats. Ataque dos Cães, que está disponível na Netflix, deu a Campion o Leão de Prata de direção em Veneza e é um dos favoritos ao Oscar. O longa ganhou diversos prêmios das associações de críticos, além dos Globos de Ouro de drama, direção e ator coadjuvante para Kodi Smit-McPhee.

Benedict Cumberbatch, como Phil Burbank, e a diretora Jane Campion durante filmagem de 'Ataque dos Cães'. Foto: KIRSTY GRIFFIN/NETFLIX

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Mas a verdade é que The Power of the Dog, o livro de Thomas Savage publicado em 1967 a partir de suas próprias experiências crescendo em uma fazenda em Montana, tinha elementos para agradar à diretora. “A história não se originou em Jane, mas tem o desenrolar de uma sensualidade crua, fala de amor, delicadeza e crueldade, que são temas que existem no trabalho dela”, disse o ator Benedict Cumberbatch em entrevista ao Estadão.

O inglês interpreta Phil, dono de uma bem-sucedida fazenda de gado em Montana junto com o irmão, George (Jesse Plemons), que está sempre metido em ternos sóbrios, mesmo sobre o cavalo, sem nunca esconder suas origens mais sofisticadas. Já Phil faz questão de vestir a fantasia do caubói: ele se recusa a se lavar quando há visita, orgulha-se de castrar gado com as próprias mãos, faz piadas machistas e gordofóbicas.

Phil demonstra seu pior comportamento quando vai à cidade e destrata Rose (Kirsten Dunst), a dona de um restaurante e estalagem, e o filho dela, Peter (Kodi Smit-McPhee), franzino e delicado, que decora a mesa com flores de papel que ele mesmo confeccionou. Incomodado com tudo aquilo, George se aproxima da viúva e acaba propondo casamento. A pobre Rose vira então o alvo favorito da ira de Phil.

O personagem de Benedict Cumberbatch é, portanto, o modelo da masculinidade tóxica. E, para o ator, é importante entender as motivações por trás desses comportamentos. “Em Phil, a masculinidade tóxica preenche um dano causado por um segredo, por uma impossibilidade de viver sua real natureza, que ele nem pode revelar”, disse o ator. “Mas a masculinidade tóxica é uma questão muito prevalente na nossa cultura em geral e em termos dos ‘homens fortes’ que são líderes. Sendo do Brasil você sabe bem o que é isso. É importante falar sobre o tema.”

Rose é uma sobrevivente de abuso, como tantas outras mulheres que conquistaram sua voz e que começam a ser ouvidas com mais atenção pela sociedade. Para Cumberbatch, não é suficiente. “Nós precisamos das plataformas para as sobreviventes, mas também entender por que os abusadores abusam, para curar a doença em vez de simplesmente tratar os sintomas e ajudar quem conseguiu sobreviver. Esses abusos precisam parar.” Portanto, fazer um filme sobre isso, especialmente sob um olhar feminino, sensível, sem julgamentos e com complexidade, é essencial.

Phil é um personagem odiável, machista, maldoso, homofóbico. O que ele faz com Rose é imperdoável. Não foi fácil para Cumberbatch interpretá-lo. “Eu peço desculpas o tempo inteiro e gosto de agradar a todo o mundo. E Phil diz não com muita facilidade, ele não se preocupa com o que os outros vão achar. Isso foi muito libertador”, disse o ator. “Fora que é um papel tão diferente de tudo o que fiz antes. E Jane é muito boa de trazer suas vulnerabilidades à tona.”

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Mas Ataque dos Cães evita o simplismo. Aos poucos, as camadas de Phil vão sendo reveladas. “Ele teve uma criação diferente da que Peter teve e teme ser quem ele realmente é, por causa das expectativas do mundo sobre o que é a masculinidade”, disse Kodi Smit-McPhee ao Estadão. “Phil reprimiu quem é e solidificou essa persona tóxica.” Peter é, como sua mãe, uma vítima dessa intimidação e tormento. Mas, quando vai passar férias na fazenda, o rapaz também vai demonstrando outros lados. “A dinâmica do relacionamento dos dois é muito interessante, porque eles batem cabeça, mas também existe uma forma de camaradagem. Aos poucos vemos que Peter tem muito poder, apesar de não parecer. E Phil tem uma delicadeza e uma inocência que não aparenta de cara.”

Ataque dos Cães, que em princípio parece um western que desconstrói os westerns e seus universos tão masculinos, vai se revelando como um thriller psicológico com um quê de história de amor. Como os personagens, o filme, em si, vai se transformando e mostrando novos ângulos.

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