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Filme 'Os Últimos Cangaceiros' testemunha a tragédia social do País

Documentário de Wolney Oliveira é ágil, cheio de ritmo e graça

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

De maneira oficial, o cangaço terminou em 1938, com a morte de Lampião na Grota de Angicos, em Sergipe. Mas até recentemente, alguns sobreviventes do bando estiveram por aí, como mostra Wolney Oliveira em seu documentário Os Últimos Cangaceiros. Os personagens principais são Moreno e Durvinha, casal que sobreviveu ao ataque da Volante ao bando e empreendeu uma incrível fuga pelo sertão.

Desceram de Sergipe, disfarçados de retirantes da seca, embrenharam-se pelo campo e foram dar em Minas Gerais, após quase 1.500 quilômetros de perambulação. Lá, estabeleceram-se com nomes falsos. Nem os filhos conheciam seu passado. Os Últimos Cangaceiros, à sua maneira, contribui para a compreensão do fenômeno do cangaço. Caso particular brasileiro do “banditismo social”, (conforme analisado pelo historiador Eric Hobsbawm em Bandidos), Lampião, Corisco e Jesuíno Brilhante seriam equivalentes nacionais a personagens como Robin Hood, na Inglaterra, Salvatore Giuliano, na Itália, e Cartouche, na França. O que distingue um bandido social de um ladrão vulgar? O fato de ser reconhecido como benfeitor dos pobres por sua comunidade, diz Hobsbawm. 

Moreno e Durvinha. Sobreviventes do ataque da Volante ao bando fugiram por 1.500 km Foto: Divulgação

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O que se sabe de Lampião, e de outros cangaceiros, é que, apesar das barbaridades praticadas, eram tidos como heróis por parte da população oprimida e miserável do sertão.

Moreno, aliás Antonio Ignácio da Silva, não era um cangaceiro comum. Era braço direito de Lampião. De acordo com o “cangaceirólogo” Frederico Pernambucano de Mello (autor da obra de referência Guerreiros do Sol), Moreno era encarregado por Virgulino do “trabalho sujo”. Quase centenário, diz ter perdido a conta após 21 mortes. 

As histórias de vida são interessantes. Moreno e Duvinha uniram-se depois da morte de outro cangaceiro, Virgino, com o qual ela havia fugido. Moreno conta, conforme a tradição do bandido social, que foi a injustiça a fazê-lo entrar no cangaço. Essa explicação é um clássico na mitologia do cangaço. Depois de encerrada sua carreira ao lado de Virgulino, fez de tudo para ganhar a vida. A iniciativa mais bem-sucedida foi a administração de um bordel em Minas. Duvinha fala de filhos largados pelo caminho e entregues a padres. Uma parte do filme será consagrada a esse reencontro de irmãos, de velhos amigos e de companheiros dos tempos de guerra. Mais que emocionantes, ou engraçados, esses encontros são testemunhos de parte da tragédia social brasileira.

O documentário é ágil, cheio de ritmo e graça, além de revelador. Wolney mescla bem os depoimentos da dupla de cangaceiros, de filhos e conhecidos, a cenas de filmes. A principal delas, o clássico Lampião – O Rei do Sertão, do libanês Benjamin Abrahão, responsável pelas únicas imagens em movimento de Virgulino e seu grupo. Entre eles, veem-se Moreno e Durvinha, jovens, dançando agarradinhos. Essas cenas, que fazem parte do patrimônio fílmico brasileiro mais precioso, foram utilizadas em vários filmes sobre o assunto, como Memórias do Cangaço (1967), de Paulo Gil Soares, ou Baile Perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, entre outros. Imagens dessas obras estão presentes em Os Últimos Cangaceiros, unidas pela lisérgica trilha sonora do DJ Dolores, como a apontar algo incômodo em nossas raízes. Algo que diz respeito à pobreza extrema, seus subprodutos e nossa tolerância e mesmo reverência em relação à violência. Mas também se refere a uma matriz importante em nossa formação cultural, origem de toda uma vertente literária (O Cabeleira, de Franklin Távora, ou Os Cangaceiros, de José Lins do Rêgo). No cinema, deu origem a um gênero, apelidado de “nordestern”, que teve início com O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, até originar uma miríade de filmes, alguns vulgares, apelativos e até eróticos. No limite, produziu uma obra-prima como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Não é tema a ser negligenciado, nem folclorizado. 

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