"Os Palhaços" abre ciclo dedicado a Fellini

Obra-prima lançada em 1970 é um falso documentário em que Fellini encena a si mesmo como um diretor de TV em busca dos palhaços do passado. Também fazem parte da mostra do diretor italiano os grandes Satyricon, Amarcord e Roma

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Por Agencia Estado
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Fellini gostava de contar que tinha fugido com um circo quando garoto. Ninguém, nem mesmo o melhor biógrafo do cineasta, Tullio Kezich, se atreveu a desmentir. Ou a confirmar. Mas provavelmente é mentira e, no fundo, pouco importa. Sobra o fato de o circo ter se mantido, ao longo de toda a carreira desse cineasta maior, como uma fantasia recorrente. Uma verdadeira obsessão, como poderá conferir o espectador com Os Palhaços, que abre um miniciclo dedicado ao diretor italiano. Os três outros títulos programados - Satyricon, Amarcord e Roma - são também obras-primas, afirmação que chega a ser ociosa quando se fala de Federico Fellini. Em Os Palhaços (I Clowns, lançado em 1970) há primeiro isso, um documentário de si mesmo. Vemos uma criança, o próprio Federico, encantado com o circo que está sendo montado na frente da sua casa, em Rimini. Depois seguimos o espetáculo em si, com as feras, malabaristas, mulheres maravilhosas, e, claro, os palhaços. Uma relação ambígua para Fellini pois, como ele também diz, a primeira vez que viu um deles teve vontade de chorar e não de rir. Por isso, talvez, os palhaços de Fellini sejam tão comoventes. Provavelmente essas lembranças - vividas ou imaginadas - estejam na origem desse falso documentário. Fellini encena a si mesmo como o diretor de um programa de TV que sai em busca dos palhaços do passado. Depois de visitar o circo Orlando Orfei, ele e sua trupe viajam a Paris. No Café Curieux, no antigo Les Halles, o mercado municipal demolido no governo Giscard D´Estaing, entrevistam Tristam Rémy, especialista na história do circo, e falam com outros freqüentadores, todos homens e mulheres ligados ao métier. A viagem a Paris é fundamental porque Fellini precisa pesquisar sobre a antiga arte circense. Vai à casa do historiador Pierre Étaix para ver um filme sobre os famosos irmãos Fratellini. Mas o aparelho enguiça. A equipe chega finalmente à Cinemateca Francesa, onde está depositado o graal - um filme com as únicas imagens em movimento de Rhum, considerado o melhor palhaço de todos os tempos. Rhum foi um mito e perdeu-se pelo nome, bebendo até morrer. Uma funcionária mal-humorada atende o sr. Bellini (sic) e mostra o filmete. Ou melhor, o que restou dele, com o palhaço legendário mal aparecendo no fundo de uma cena de poucos segundos. Decepção total. Fellini sente-se perseguindo um fantasma, um resto de sonho, traços de fumaça. E é isso mesmo que havia lhe dito Rémy: para que fazer um documentário sobre uma arte em extinção (estamos em 1970), que não tem vez no mundo moderno e certamente não terá nenhum futuro? Pois bem, se Fellini começa com uma fantasia, a dele próprio, prossegue seguindo os traços que restam da velha arte de fazer rir. E, com essa busca, a apresenta de forma magnífica ao espectador. Não se trata de uma busca intelectual, ou apenas intelectual. É uma procura amorosa, cheia de cores e de sons. Fellini sabe que o imaginário circense não comporta tons pastel. Usa toda a paleta de sua imaginação visual para fazer o espectador penetrar no encanto desse mundo em via de desaparição. E o faz através da música sublime de Nino Rota. Nino tinha com Fellini uma parceria de vida. Adivinhava o que o diretor tinha em mente e na sua fértil imaginação e o traduzia numa paleta sonora também ela colorida como um arco-íris. Os temas circenses estão presentes em boa parte dos filmes em que Nino trabalhou com Fellini, como A Doce Vida e Oito e Meio. Com maior motivo, as famosas marchinhas de circo estão presentes em Os Palhaços. Fellini vai em busca desse sonho pessoal, penetra nas trevas, ou no desconhecido, mas leva seu Virgílio de sempre, Nino Rota. Qual o grau de realidade com o qual eles trabalham? Se o circo não tem futuro, também não tem passado, pois o espetáculo se esgota no momento em que acontece. O circo mora no domínio da memória, e pertence então, de direito, ao território central da obra de Fellini. Há o tempo que passou, que fica apenas na lembrança dos que o viveram e o sentimento que dele se guarda. O resto é nada, é sombra e fumaça. No entanto, é desse nada, da sombra e da fumaça que Fellini constrói um mundo. Seu estudo dos palhaços é minucioso e avança por dicotomias. Há o palhaço branco e o Augusto. Um é sério e dominador; o outro, anárquico. Essas dicotomias se estendem pela vida. Hitler era um palhaço branco, Mussolini, um Augusto. O universo humano é todo feito de oposições. Patrões e empregados, tristes e alegres, razão e loucura, rebeldes e conformistas. Tudo vai fazendo sentido à medida que a pesquisa avança. Shakespeare dizia que o mundo era teatro e os homens, atores. Para Fellini, o mundo é um picadeiro e no centro dele estão os palhaços. Atuam para a platéia, mas, sobretudo, atuam para si mesmos. Até que um dia se cansam e saem de cena. Como aquele velho palhaço que aparece no final e pergunta a Fellini: Dottore, posso andare a casa? Posso ir para casa? De cortar o coração, porque diz respeito a todos e a cada um de nós. Os Palhaços (I Clowns). Comédia. Direção de Federido Fellini. Ale-Fr-It/70. Duração: 90 minutos. Cineclube Directv 1, às 14h30, 16h20, 18h10, 20 horas, 21h50 (terça não haverá sessão). 12 anos.

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