'Oito e Meio', de Federico Fellini, ganha versão restaurada

Clássico do diretor, entretanto, nunca foi uma unanimidade

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Na série de clássicos restaurados que recolocou em cartaz filmes que a nova geração só conhecia da TV e do DVD, chega a vez de um grande Federico Fellini. Se você pertence ao grupo que nunca viu Oito e Meio no cinema, é sua chance. E, se você já viu, reveja, mesmo assim. Nove entre dez críticos vão dizer que Fellini 8 1/2 é a obra-prima do diretor e até o décimo será capaz de vacilar entre A Doce Vida – que também voltou restaurado – e Amarcord, retornando a Otto e Mezzo. Em 1963, ganhou o Oscar de filme estrangeiro e também o de melhor figurino em preto e branco. Mais recentemente, uma enquete com 30 importantes cineastas apontou-o como o maior filme europeu de todos os tempos e Fellini, como o autor mais influente.

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Mesmo assim, Oito e Meio não é, e nunca foi, uma unanimidade. Na época, o filósofo Gerd Bornheim considerava absurdo que um artista reduzisse o cinema a um delírio autobiográfico – desconsiderando o fato de que o próprio Fellini dizia que, de todos os seus filmes, talvez fosse o que menos se inspirava em incidentes de sua vida. A crítica norte-americana Pauline Kael também não rezava pela cartilha de Oito e Meio. Admirava a beleza das cenas, mas achava que Fellini se comportava como um aspirante a diretor, transformando um receituário de situações que espelhavam a suposta crise de criação em verdades absolutas, e que nesse sentido o filme lhe parecia bem convencional.

De todas as críticas feitas a Oito e Meio, a de Pauline Kael permanece a mais bizarra. ‘Convencional’ não é um termo que se aplique impunemente a um filme como o de Fellini. O diretor realizou-o logo depois de A Doce Vida, em 1960. Na verdade, entre ambos, exercitou-se num pequeno grande filme – o episódio As Tentações do Dr. Antônio, incorporado a Boccaccio 70 com outros episódios assinados por Luchino Visconti (O Trabalho) e Vittorio De Sica (A Rifa). O que seria o quarto episódio, dirigido por Mario Monicelli, Renzo e Luciana, foi suprimido e nunca reintegrado à versão lançada fora da Itália. E o importante é que, logo depois de La Dolce Vita – que ganhou a Palma de Ouro em Cannes –, Fellini descobriu a psicanálise de Jung ao se aproximar de um renomado discípulo do mestre.

Por influência de Ernst Bernhard (seu nome), Fellini leu a biografia de Jung, Memories, Dreams, Reflections – Memórias, Sonhos, Reflexões – e também adentrou-se nos mistérios do I Ching e passou a fazer o registro de seus sonhos. Hoje, o que o diretor chamava de ‘percepções extrassensoriais’ são interpretadas como manifestações psíquicas do seu inconsciente e, como tal, à luz da psicologia de Jung, se constituem numa influência decisiva sobre a arte do Fellini mais maduro, marcando sua definitiva ruptura do neorrealismo, do qual já vinha se distanciando pela via do onirismo. O Fellini pós-Oito e Meio incorpora o sonho e fragmenta a narrativa. Os próprios personagens vão virando arquétipos e, por isso mesmo, sem negar o brilho dos filmes, muitos críticos dizem que o cinema de Fellini virou um gênero. Criou-se até um adjetivo, felliniano, empregado não apenas para seus filmes e personagens, mas para coisas imaginativas e grandiosas.

Tudo isso é suscetível de discussão e contribuiu para a aura que o filme adquiriu nesses 50 e tantos anos. Oito e Meio começa num clima de sonho, com um homem que foca no carro parado no trânsito pesado. É uma metáfora do impasse criativo vivido por Guido Anselmi, o cineasta interpretado por Marcello Mastroianni – e o grande ator tornou-se o alter ego do autor. O filme que Guido sonha realizar não anda e ele libera sua mente em lembranças e projeções fantásticas que Fellini transforma em imagens filmadas nos gigantescos sets montados no estúdio 5 de Cinecittà (e seus arredores). Guido idealiza o passado, suas lembranças, e as mulheres. Além da mulher (Anouk Aimée) e da amante (Sandra Milo), é perseguido por uma jovem que representa a pureza (Claudia Cardinale) e pela animalesca e demoníaca Saraghina, que talvez tenha sido seu primeiro objeto de desejo, quando garoto. Com os coleguinhas de escola, Guido, com a imensa capa prata das escolas italianas sob o fascismo, corre à casa de Saraghina, frente ao mar, e lhe pede que dance. “La rumba, Saraghina, la rumba!”

Eddra Gale é quem faz o papel e, quando Guido resolve recriar a fantasia do seu passado, a atriz que deve encarnar a Saraghina não se revela à altura da personagem. É um dos motivos pelos quais o filme dentro do filme se destina ao fracasso, mas isso não impede que, no desfecho, Guido/Fellini, como a Lola Montès de Max Opuls, monte um imenso espetáculo de circo do qual participam os 50 e tantos personagens, mais os integrantes da equipe técnica e artística. É um dos desfechos mais feéricos e grandiosos do cinema. A deslumbrante fotografia em P&B de Gianni di Venanzo e a trilha de Nino Rota somente a magia.

O curioso é que Oito e Meio terminou inspirando dois famosos musicais. O primeiro foi All That Jazz/O Show Deve Continuar, de Bob Fosse, que dividiu com Kagemusha – A Sombra do Samurai, de Akira Kurosawa, a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1980. No filme de Fosse, um diretor à beira da morte faz a síntese de sua vida e obra num leito de hospital. Veio depois, em 2009, Nove, de Rob Marshall, que os fellinianos de carteirinha tendem a menosprezar, mas no qual Fergie, como a Saraghina, é poderosa. Seu número é magnífico, e Fellini, que morreu em 1993, aos 73 anos, teria aprovado.  

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