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Obra-prima de Kubrick sai em DVD

Por Agencia Estado
Atualização:

Ele era um monstro. E um gênio. Peter Sellers praticava, como nenhum outro ator, a arte da crueldade. Tinha verdadeiro prazer, contam seus biógrafos, em tornar infelizes as pessoas ao seu redor, principalmente aquelas a quem dizia amar. Mas era um gênio da interpretação, a ponto de expressar à perfeição o epigrama de Jorge Luis Borges: eu sou eu e sou muitos. Nenhum outro diretor radicalizou tanto a capacidade de Sellers de ser único e múltiplo. Stanley Kubrick levou-o ao seu limie em Doutor Fantástico. Salve, salve, aleluia. A obra-prima de Kubrick, de 1964, até agora estava inédita no circuito de vídeo do País. A Columbia a resgata, num lançamento luxuoso em DVD. Há um monte de extras que tornam o lançamento atraente. Making of, curiosidades, filmografias, entrevistas com Sellers e George C. Scott. Todo esse material precioso, que enriquece o disco digital, tem a desvantagem de não possuir legendas, ao contrário do filme, propriamente dito, que só falta ter legendas em javanês, de tantas que são as opções. Mesmo que você não domine o inglês a ponto de aventurar-se pelos extras de Doutor Fantástico, não desanime. O melhor é o próprio filme. Kubrick pôs nele o seu gênio e ainda foi longe na exploração do gênio de Sellers. Embora o título seja esse, Doutor Fantástico, há um subtítulo: "Como Eu Aprendi a não Ter Medo e a Amar a Bomba". A bomba do título é a atômica e o filme foi feito no auge da corrida armamentista, quando as duas superpotências da época, os EUA e a União Soviética, mantinham o mundo à sombra do Armageddon. O fato de não existir mais a URSS, o fato de a bomba ter deixado de ser o bicho-papão dos anos 60, nada disto diminui as força e o impacto desse filme extraordinário, do mesmo jeito que o fato de o homem não ter hoje estações na Lua nem estar viajando para Júpiter não desautorizou 2001, uma Odisséia no Espaço como legítima obra-prima que é. "Obsessivo" é o adjetivo mais suave que os críticos costumam empregar para definir Kubrick. Autoritário era outro, centralizador, um terceiro e usurpador, um quarto. Kubrick odiava dar crédito a seus colaboradores. Se pudesse, seu sonho seria fazer os filmes sozinhos. E até poderia, pois além de diretor, roteirista e produtor, era também fotógrafo e montador. Só não foi autor total e exclusivo porque os sindicatos que operam na indústria do cinema, mesmo nestes tempos de globalização, sempre tiveram força para fazê-lo aceitar os profissionais que operam nessas áreas (e a dar-lhes crédito). Ser autor total talvez fosse o sonho número 1 de Kubrick, mas ele também tinha outro - queria fazer filmes definitivos, obras-primas de diversos gêneros. Isto, ele fez. Guerra (Glória Feita de Sangue), ficção científica (2001), terror (O Iluminado), épico (Spartacus)... A lista é longa, principalmente se considerando que a obra completa de Kubrick inclui apenas 13 filmes em 46 anos de carreira como diretor, interrompida pela morte do artista, em 1999. Um dos momentos mais brilhantes dessa sucessão de clássicos e obras-primas é Doutor Fantástico. Kubrick baseou-se no livro Red Alert, de Peter George, mas todo mundo sabe que o romance foi só um ponto de partida. Kubrick, grande jogador de xadrez, era obcecado por literatura bélica (leu quase cem livros para escrever o roteiro de um filme que nunca fez, sobre Napoleão) e freqüentava o Institut of Strategic Studies, de Londres. Estava sempre informado sobre armamentos, estratégias militares, esse tipo de coisas. Doutor Fantástico mostra o que ocorre quando um general maluco desencadeia um ataque nuclear à URSS. O presidente americano precisa recorrer à linha direta, ao famoso telefone vermelho, para alertar seu colega soviético. O alerta vermelho não impede o ataque nem a conseqüente retaliação. O filme termina com uma série de explosões atômicas, ao som de "We will meet again..." Nós nos encontraremos de novo. Suprema ironia de um filme cujo tema, afinal de contas, é a aventura do fim do mundo ou, para colocar em outras palavras, o malogro da história e da humanidade, sacrificadas por heróis irrealizados (ou anti-heróis) no altar do armamentismo. Depois de Kubrick, 2001 virou um ano emblemático do cinema. Este ano, o grande artista foi homenageado de diversas formas no Festival de Berlim. A mostra terminou com a versão restaurada de 2001, exibiu Glória Feita de Sangue (na homenagem ao ator e produtor Kirk Douglas) e ainda houve a première mundial do documentário Stanley Kubrick - A Life in Pictures, de Jan Harlan. O ator teve acesso a filmes domésticos, entrevistou familiares e colaboradores, especialistas, enfim. Todos colocam Doutor Fantástico nas nuvens. Martin Scorsese fala sobre o impacto que o filme lhe produziu, na estréia. Analisa-o hoje. Chega à conclusão de que a sátira de Kubrick, seu formidável humor negro, continuam intactos. É um filme genial - de um autor genial, com um ator genial. Por melhor que sejam George C. Scott e Sterling Hayden (como o general Jack D. Ripper, que remete a Jack, o Estripador) a personalidade dominante, em cena, é a de Sellers. Sua tríplice criação - como o presidente dos EUA, o nazista Doctor Strangelove e o capitão Mandrake - é um dos grandes momentos de interpretação do cinema. Seu diálogo com Sterling Hayden é um daqueles momentos que só um Kubrick poderia criar. E, quando o presidente tenta falar ao telefone, fica evidente que Doutor Fantástico, como todo grande filme de Kubrick, trata da dissolução da palavra como único elo que une e organiza os homens. Doutor Fantástico (Doctor Strangelove). EUA, 1964. Direção de Stanley Kubrick, com Peter Sellers e George C. Scott. DVD da Columbia.Nas locadoras, por R$ 37,80.

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