"O Voto É Secreto": uma radiografia do Irã

Seguindo o percurso de uma urna eleitoral, Babak Payami realiza um belo filme, que não se furta a participar do debate sobre a política contemporânea

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Por Agencia Estado
Atualização:

Há muitas maneiras de se fazer a radiografia política de um país. O iraniano Babak Payami descobriu uma das mais originais: seguir o percurso de uma urna eleitoral durante um período de eleições. O filme chama-se O Voto É Secreto e é o mais recente exemplar do badalado cinema iraniano que chega ao Brasil. Concorreu no Festival de Veneza do ano passado e foi tido como favorito. Acabou perdendo para Casamento à Indiana, de Mira Nair, mas rendeu o prêmio de direção a Payami. No começo do filme, uma mulher desembarca de um avião numa região remota do país com uma urna eleitoral. Ela é funcionária do Estado e deve levar a urna aos eleitores que vivem dispersos pela região. A fiscal vai escoltada por um soldado e tenta convencer as pessoas a votar. Em entrevista, Payami disse que seu filme não pretendia ser um registro realista sobre o sistema eleitoral iraniano. Apostava no surrealismo, no absurdo de certas situações. A explicação pode ser preventiva, para evitar problemas com a ainda muito atenta censura iraniana. Convém lembrar que alguns filmes iranianos ganham prêmios no exterior e acabam vetados em casa, como aconteceu com O Círculo, de Jafar Panahi. De qualquer forma, também é bom lembrar que o absurdo pode ser um excelente caminho para se chegar a algum tipo de verdade, como sabiam Buñuel e Ionesco, por exemplo. Só que o absurdo proposto por Payami é bem leve e diz respeito ao aspecto formal de uma eleição no Irã. A fiscal é cumpridora da lei, é sua representante. Tem de acreditar naquilo que está fazendo, na importância fundamental de recolher votos de maneira imparcial. Mas a sua percepção não é compartilhada pela população, gente do campo, preocupada em sobreviver e que não vê muita relação entre o voto depositado numa urna e a sua, digamos, qualidade de vida. Portanto, é nesse desencontro - entre o prático e o formal - que o filme funciona. É aí também que aparece o "absurdo" de que fala Payami. Porque a política só passa a ser levada a sério quando produz resultados palpáveis, do contrário parece ao povo uma mera formalidade. Isso não acontece só no Irã. Num país como a França, uma parte dos votantes resolveu aproveitar o domingo de tempo bom e pôs Le Pen no segundo turno. Agiu como se eleição fosse só uma formalidade chata, a que se adere ou não, sem maiores conseqüências. Modernidade - O filme de Payami é sensível às mudanças políticas no Irã. Depois de duas décadas com aiatolás no poder, o país começa a se modernizar com a eleição do moderado Mohamad Khatami. Mas o regime vive espremido entre os duros e os moderados; entre quem defende o poder teocrático e fechado e quem quer se abrir para o mundo e separar religião do Estado. Essa cautela, essa hesitação, esse debate interno, se sentem a cada passo de O Voto É Secreto. A fiscal é uma adepta da democracia. Precisa convencer o povo de sua importância. Faz isso com graça e inteligência. E o final surpreende, e encanta. Um belo filme, testemunho de que o cinema iraniano passou a participar de forma ativa no debate das questões contemporâneas - com O Círculo, sobre a posição subalterna da mulher naquela sociedade, com O Voto É Secreto, sobre a dificuldade de convencer a população de que a democracia representativa pode ser a melhor alternativa para quem sai de uma tradição autoritária.

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