O suspense ‘Segunda Chance’ leva impasses morais de personagem à reflexão

Filme da dinamarquesa Susanne Bier discute implicação ética das boas ações

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O que deve guiar nossas ações? Princípios ou consequências? A questão, que tem cada vez mais ocupado filósofos de botequim e de redações, está na base de Segunda Chance, novo filme da dinamarquesa Susanne Bier. 

PUBLICIDADE

Na ficção, ideias são debatidas por intermédio de uma armação dramática. Neste caso, dois policiais atendem a uma ocorrência no apartamento de um casal de drogados, que mantêm um bebê em péssimas condições. O ambiente é sujo, degradante, deplorável. Tanto o pai como a mãe parecem chapados e machucados por brigas contínuas, enquanto o bebê fica entregue à própria sorte. Ou azar, no caso. A descoberta causa ainda maior revolta porque um dos policiais é casado e pai de um recém-nascido da mesma idade.

Mas, logo descobriremos, a vida deste jovem policial, Andreas (Nikolaj Coster-Waldau), também não se apresenta como um mar de serenidade. A esposa é instável e agressiva. E, um belo dia, de maneira misteriosa, o filho dos dois aparece morto. Morte súbita de recém-nascido, dizem.

Cabe dizer que as ações de Andreas o levam à conclusão de que pode dar um jeito no mau golpe do destino e, ainda por cima, fazer o bem a um inocente. A justificativa: ele estará melhor conosco, numa casa “normal” e equilibrada.  Esse é o enredo básico de Segunda Chance. Convém não avançar mais nada, pois a história, bem bolada, apresenta uma série de reviravoltas. Cabe lembrar que Susanne Bier é uma cineasta de cunho humanista, preocupada com as boas causas e crítica dos desvios da sociedade contemporânea. Esse tipo de atitude, muito desejável na vida civil, não é, porém, garantia de boa arte. Muitas vezes, o artista bem-intencionado torna-se um pregador de seu ideário e coloca a dramaturgia a serviço de demonstrações favoráveis à causa. O filme mais conhecido de Susanne, Em Um Mundo Melhor, padece dessa moléstia das boas intenções.

De certa forma, Segunda Chance é também a crítica a esse tipo de atitude salvacionista – e, nessa medida, significa um passo adiante na reflexão de Susanne sobre os desacertos do mundo. Discute, de maneira adulta, essa atitude que, no limite, é o núcleo do comportamento religioso: as ideias “certas” podem (e devem) ser impostas aos outros, para o próprio bem delas. Durante a Santa Inquisição, a Igreja torturava os corpos para salvar as almas. Hoje mesmo, grupos religiosos conservadores continuam tentando impor suas crenças à sociedade como um todo, como se o Estado não fosse laico.

Inútil, portanto, falar da importância desse trabalho de Susanne Bier para o mundo atual. A discussão de fundo vem sublimada num conflito de ordem individual, mas seu alcance geral é evidente. Resta dizer que, como cinema, este parece ser seu trabalho mais maduro. Pois, apesar de guiada por ideias importantes (e sem dúvida generosas) não esquece jamais da dramaturgia e de sua dinâmica particular. No centro da ação, Andreas é um personagem que goza ora das nossas simpatias, ora das nossas dúvidas. Como agiríamos em seu lugar? Esta é a menor das perguntas levantadas por este filme inteligente, interessante e capaz de prender a atenção do espectador, ainda que este esteja mais atento ao suspense da ação que às suas implicações éticas.

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.