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"O Pornógrafo" mescla sexo e sofrimento

Bertrand Bonelo é um jovem diretor canadense de 33 anos. Assina O Pornógrafo. O filme com Jean-Pierre Léaud é a melhor estréia de amanhã nos cinemas da cidade

Por Agencia Estado
Atualização:

Bertrand Bonelo é um jovem diretor canadense de 33 anos. Assina O Pornógrafo. O filme com Jean-Pierre Léaud é a melhor estréia de amanhã nos cinemas da cidade, mas, às vésperas do Oscar (no domingo), a atenção do público fica concentrada nos lançamentos que concorrem aos prêmios da Academia de Hollywood. O Pornógrafo não teria a menor chance no Oscar. Trabalha em dois registros aos quais a academia é avessa: é um filme-cabeça e trata, explicitamente, de sexo. Um filme-cabeça sem deixar de ser humano. Emocionante, até, só que sua emoção opera no registro mais elaborado do intelecto. Um filme de sexo explícito, sim, com direito a tudo o que você possa imaginar. Essas cenas de sexo estão lá e quase todas no começo. E então vem a cena talvez mais importante de O Pornógrafo: Léaud, que faz o pornógrafo do título, um diretor de filmes de sexo explícito, fecha os olhos quando seus atores estão copulando em cena. É um pornógrafo que não quer ver pornografia. É o que faz desse filme franco-canadense uma experiência única. Bonelo é músico de formação. Cria as cenas musicalmente, pensando no tempo, como na música. Usa a trilha para fazer referências e prestar homenagens. O diretor de filmes pornográficos é um homem em crise de identidade. Atravessa um mau momento com a mulher, o filho saiu de casa ao descobrir sua profissão. E então o filho volta. Quando ele aparece pela primeira vez está caminhando, na rua. Preste atenção na música. É o tema sublime de O Garoto Selvagem, o mais rosselliniano dos grandes filmes de François Truffaut. Você, por certo, se lembra da cena em que Victor, o garoto, uiva para a Lua. A música que lhe servia de fundo, de despedaçar o coração, é a mesma que se ouve em O Pornógrafo. Por que isso ocorre é um atraente tema para discussão. O Garoto Selvagem, sem nenhuma sugestão de sexo, muito menos explícito, trata do conflito entre instinto e civilização. Tem a ver com temas embutidos em O Pornógrafo. E, depois, Léaud foi o ator fetiche de Truffaut, seu alter ego. Interpretou Antoine Doinel em toda a série com o personagem autobiográfico do diretor. Léaud não é verdadeiramente um ator, no sentido técnico do termo. Mas traz para a tela sua persona, esculpida em filmes essencialmente políticos, com todos os diretores importantes com os quais trabalhou. Além de Truffaut, houve outros: Jean-Luc Godard, Pier-Paolo Pasolini, Glauber Rocha. Nos diálogos com a mulher, interpretada por Dominic Blanc, Jacques, o pornógrafo, lembra os míticos anos 60, quando fazer filmes de sexo explícito era um gesto político de protesto. Só que o tempo passou e ele foi ficando cada vez mais amargurado. Seu malaise - o mal-estar, no sentido mais existencial - em relação ao que se tornou é evidente. A volta de Joseph, o filho, interpretado por Jérémie Rénier, acentua essa necessidade que o pornógrafo experimenta de reconciliar-se consigo mesmo. Dignidade - Num depoimento escrito, o diretor comentou seu trabalho com Léaud. Disse que ele carrega uma rara possibilidade de exprimir o sofrimento: "É um homem confrontado com a necessidade de manter sua dignidade, com a recusa a ser vulgar, mesmo fazendo filmes pornográficos." E Bonelo define o que, para ele, é a pornografia: "É quando nos calamos e mostramos os órgãos sexuais, algo sem interesse nenhum. Para contradizer a pornografia, procurei encontrar dignidade, profundidade e sofrimento na expressão de palavras muito cruas." Léaud foi fundamental no processo. Com O Pornógrafo, é o cinema francófono que volta às telas da cidade. Alguns dos melhores filmes vistos este ano na cidade são falados em francês, senão exatamente procedentes da França. O mais popular deles, mas não o melhor, é O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, de Jean-Pierre Jeunet. Bastante superiores são A Cidade Está Tranqüila, de Robert Guédiguian O Gosto dos Outros, de Agns Jaoui, e agora O Pornógrafo. Não é um filme francês, mas franco-canadense. A França apóia, além de suas fronteiras, o cinema de língua francesa. Faz parte do seu projeto de oferecer-se como alternativa à dominação de Hollywood. Bonelo começou esse filme meio ao acaso, a partir de notas sobre o universo da pornografia. Desenhava o personagem do pornógrafo, mas ele não o satisfazia. O verdadeiro interesse do diretor pelo filme surgiu do personagem do filho, do conflito que ele estabelece com o pai. O curioso é que, ao filmar, Bonelo diz que queria identificar-se com Joseph, mas a presença carismática de Léaud o aproximava cada vez mais de Jacques. É um personagem triste. Torna pungentes certos momentos de O Pornógrafo, como se Bonelo quisesse refazer o lamento contido na canção de Charles Trenet que Truffaut usou como tema de Beijos Proibidos: "Que reste-t-il de nos amours?" Num certo sentido, é um filme kazaniano. Evoca o mais belo filme de Elia Kazan nos anos 60. Em Clamor do Sexo, Natalie Wood perdoa a mãe que impediu seu romance com Warren Beatty e transformou sua vida num inferno de paixão reprimida. Bonelo não cita Kazan, mas repete o procedimento em O Pornógrafo. Ao perdoar o pai, Joseph começa a afastar-se dele, para viver, sem ressentimento, a própria vida. Sem perdão, permaneceria atado ao rancor pelo pai. O Pornógrafo é uma poderosa experiência de cinema (e de vida). Serviço - O Pornógrafo (Le Pornographe). Drama. Direção de Bertrand Bonelo. Fr-Can/2001. Duração: 108 min. 18 anos.

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