O mistério da garota do leque chinês

Em 'Singularidades de Uma Rapariga Loura', a obra simples de um mestre

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
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Singularidades de Uma Rapariga Loura tem a divina concisão dos filmes recentes de Manoel de Oliveira. É um caso, contado por um homem a uma mulher, no interior de um trem. Um caso de amor mal terminado. No início, imagens do interior de um trem. Num banco, à janela, a personagem feminina, interpretada por uma atriz fetiche de Oliveira, Leonor Silveira, com sua beleza madura e inteligente. Alguém que sabe ouvir, virtude cada vez mais rara num mundo em que todos preferem falar. Reunido a ela pela casualidade da viagem, um rapaz, vivido por Ricardo Trêpa, neto do diretor. Antes que dirijam a palavra, ouve-se uma voz em off: "Falas a um estranho com mais facilidade do que falarias a um conhecido". É a base da psicanálise, enfim. E o ambiente hipnótico do comboio torna-se propício a confissões como um acolhedor consultório analítico. A história de Macário (este é o nome do jovem) é baseada no conto homônimo de Eça de Queiroz. Ele conta que trabalhava na loja de vestuários do seu tio Francisco. Na janela em frente à sua repara numa moça loura, que mostra e esconde seu rosto atrás de um leque chinês. "Um leque encantador...", suspira o moço. E sua interlocutora, Leonor Silveira, comenta, como boa analista: "Mas não é tanto o leque que o encanta...". Óbvio, é a moça por trás do leque, mas esse movimento de esconder e revelar não deixa de ter seu sentido na fábula contada por Manoel de Oliveira. Basta dizer que Luísa (Catarina Wallenstein) seduz tanto o moço que este consegue ser apresentado a ela. Onde? Num sarau num círculo cultural dedicado ao culto de Eça de Queiroz. Lá, os devotos do autor de Os Maias se reúnem para ouvir música e poemas. Na noite em que Macário busca seduzir a moça do leque, o ator Luís Miguel Cintra (apresentado como tal), participa do sarau declamando poema de um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Uma noite lisboeta perfeita, culto sóbrio e vagamente provincial às belas artes, reunindo pessoas de bom gosto e boa família. Um regalo burguês, que serve também como ambiente para encontros decorosos, como é o de Macário e Luísa. Encontro bem-sucedido, mas que termina em problema porque o tio não consente no casamento, Macário não tem um centavo de seu e precisa se aventurar em Cabo Verde para fazer fortuna. Tudo iria para o bem, mas como conta Macário à desconhecida no trem, a história é de dificuldades e não de felicidades fáceis. E, depois de tudo, a rapariga loura tem uma certa singularidade... Qual será? A narrativa é breve para o padrão atual do cinema. Não chega a uma hora. Causa espanto como um diretor, que soube ser prolixo em décadas anteriores, chegar a tal poder de síntese. E a tal leveza. Por exemplo, com tão pouco tempo para contar a história, como Manoel se dá ao luxo de digressões como a do leque ou o longo sarau no Círculo Eça de Queiroz? Uma hipótese: essas digressões não o são. Não apenas se integram à narrativa, como são partes fundamentais dela. O leque para expor a relação entre o mostrar e o esconder próprios à rapariga. O sarau para nos imergir no ambiente no qual a história se passa, toda no tempo atual, mas com inconfundível atmosfera de século 19. Coisa de mestre. E de um mestre que, após ter atingido a idade centenária, descobre que o profundo só se atinge pelo caminho do simples. Por isso, em seu cinema não há uma palavra a mais. Nem um movimento de câmera injustificado, ou uma iluminação existente apenas para efeito de embelezamento. É o cinema em seu grau mais elementar, em sua depuração mais completa. Só os grandes atingem tal simplicidade.

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