‘O Juízo’ mostra família atormentada por espíritos que cobram dívidas passadas

Drama sobrenatural de Andrucha Waddington, que fala de traição e vingança, estreia nesta quinta, 5

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Fernanda Torres conta que sentiu o que define como “herança cármica” de Minas ao visitar uma fazenda que pertenceu à família de Paula Lavigne. “Era um clima muito pesado que, no meu imaginário, evocou escravidão, extrativismo, todo um passado colonial”, ela explica. Deu-lhe a vontade de escrever um roteiro, o que ela fez. 

Cena e bastidores do filme Foto: SUZZANNA TIERIE

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O filme que estreia nesta quinta, 5 – O Juízo –, é o mais novo resultado da parceria de Fernandinha, como costuma ser carinhosamente chamada para diferenciar da mãe, a grande Fernanda Montenegro, com Andrucha Waddington. Juntos na arte e na vida. E, dessa vez, não é só a sogra que Andrucha dirige. Seu filho com Fernanda, Joaquim Torres Waddington, de 19 anos, faz uma expressiva estreia como ator.

“Não foi nepotismo, não. Testei muitos jovens para o papel, e ele foi testado também. Saiu-se melhor. É talentoso, sim”, diz o orgulhoso pai. Além de atriz, Fernandinha já fora roteirista para o irmão, Fernando Torres, em Redentor e dera seus pitacos – os palpites – na obra do marido. “Andrucha não sabia como terminar o Eu Tu Eles e eu sugeri aquele final. O de Casa de Areia, no qual era atriz, com mamãe, foi o Ruy (Guerra) quem deu. Cinema é arte colaborativa. Dá para sugerir, e o diretor acata ou não. Isso não torna o filme menos dele.” 

No caso de O Juízo, tão logo começou a escrever, deu-se conta de que o desafio era encarar o cinema de gênero. “Isso foi há cinco anos, porque escrevi lá em 2014, e naquele tempo o cinema de terror ainda não se tornara essa tendência de hoje do cinema brasileiro. Estávamos no ciclo das comédias”, lembra.

Começou a surgir a história de Couraça, o escravo que traficava diamantes e foi traído, morrendo, com a filha, na emboscada armada por um ancestral de Augusto Menezes, o personagem de Felipe Camargo. 

Resumindo, Augusto perdeu o emprego e até o respeito próprio, devido ao alcoolismo. Falido, tenta recomeçar nessa fazenda que herdou, mas é assombrado pelos fantasmas de Couraça e da filha. O fantasma cobra uma dívida, que não é outra coisa senão o velho olho por olho. Quer a vida do filho de Augusto, interpretado pelo filho do diretor e da roteirista. Couraça, impressionante, é criado por Criolo, que já tivera algumas participações (pequenas) em filmes, mas aqui ganha seu grande papel – e corresponde.

Para Fernanda Torres, a experiência foi decisiva porque, no lastro de O Juízo, vieram livros, crônicas. Ela conta: “Quando escrevo, não formulo um plano, seja para romance ou roteiro. Vou escrevendo, possuída pelos personagens que vão determinando o rumo”. O repórter brinca que é o casamento perfeito, porque Andrucha, como diretor, à maneira de John Huston, parece não ter um estilo. Ele serve às histórias que quer contar, e embora cinema de gênero tenha virado sinônimo de terror, Andrucha, na verdade, tem testado gêneros – comédia, comédia romântica, drama psicológico, suspense, musical. Basta analisar sua obra – Eu Tu Eles, Casa de Areia, Sob Pressão, Chacrinha, O Juízo, etc. “É o que mais gosto de fazer – contar histórias. Entendo perfeitamente isso que você diz que o Huston afirmava. O Tesouro de Sierra Madre, que ele escreveu e dirigiu, é um dos meus filmes favoritos.” Fernanda intervém. “Ele (o marido) não tem um estilo, mas todos os filmes são estudos de personagens, e essa preocupação com o humano faz dele, para mim, um autor.” O autor retribui e diz que O Juízo, que define como drama sobrenatural, é seu melhor filme.

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“Eu acho”, palavra de Andrucha. “Foi um filme que deu muito trabalho, mas também deu muito prazer. Essa coisa de criar um clima.” Achar o cenário ideal – a fazenda – já foi difícil. Localiza-se na fronteira de Minas. “Fazer terror com vacas no pasto não é fácil, meu amigo.” Agora é Fernanda, de novo, falando. Admite que tinha medo de fracassar. “Tive consultoria de roteiro, mas era uma coisa nova. Ao escrever, vieram os clichês do gênero e eu parei de lutar contra eles. O Iluminado (Stanley Kubrick), Os Inocentes (Jack Clayton), que é genial. E o cinema é dinâmico. Você escreve uma coisa e o diretor tem de se virar, conforme as circunstâncias.” Ocorre que choveu muito no set e os acessos para a fazenda, o pasto, tudo virou um lamaçal. “O filme ficou muito mais sombrio”, admite ainda o diretor.

Depois de tanta expectativa, Fernanda agora ri. “Pô, apesar de aquele cara (Roberto Alvim) dizer que mamãe é sórdida, e ela não é? (Pergunta para o repórter.) Mamãe é a sordidez encarnada.” É ironia, gente. Fernandinha divaga: “Não queria, de forma irresponsável, destruir a reputação da família com um mau terror. Essas coisas horríveis que ele (Alvim) disse terminaram sendo positivas porque criaram um movimento de celebração da mamãe e ela virou unanimidade. Seus 90 anos viraram uma festa do Brasil. E o público tem correspondido à proposta do filme (O Juízo)”.

‘Atuar é uma forma de entender os outros e nos descobrirmos’

Ele é o cara. Kleber Cavalcante Gomes, mais conhecido como Criolo, antes Criolo Doido, é cantor, compositor, rapper e professor. Havia feito videoclipes e participações pequenas em filmes. Agora se pode dizer que é ator, e dos bons. Andrucha Waddington deu-lhe um grande papel em O Juízo, o escravo Couraça. Um papel para o qual, diz a roteirista Fernanda Torres, Criolo traz sua icônica presença de porta-voz dos excluídos brasileiros. E isso tem tudo a ver com o personagem.

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Como o Andrucha o convenceu a fazer o filme? Antes temos de falar sobre como ele chegou à conclusão que poderia ser eu. Ele estava voltando para o Rio depois de haver encontrado as locação, a fazenda. Diz que ligou o rádio do carro e era eu cantando. De cara, pensou: “Pode ser o Criolo”. Ele ligou, eu estava no Rio. Marcamos de conversar no hotel. Ficamos quatro horas conversando. Deu medo, mas topei. E já que estava dentro, o desafio era fazer bem. Foi todo mundo pegando junto naquelas leituras, naquele set, uma coisa linda. No começo, estava acanhado. Imagina – com o Lima (Duarte), a Carol (Castro), o Felipe (Camargo). A dona Fernanda (Montenegro) iluminando o caminho. Sabe uma coisa? Fui deixando de ser acanhado. Fiquei felizão de estar ali.

O escravo que vem cobrar uma dívida do tempo do colonialismo é sob medida para você? De cara, quando Andrucha falou o que era pintou o entendimento. Isso, a natureza desse personagem, eu entendo. Isso, eu posso fazer. Tem muito a ver com a música, com a poesia que eu faço. Canto o horror, denuncio a violência institucionalizada e a desigualdade social como tragédias brasileiras, mas canto com alegria, para fazer o público feliz.

De onde vem essa poesia tão contundente, tão forte? Da minha mãe, cara. Minha mãe é pequenininha, benzedeira lá nas bordas da quebrada. A vida toda vi minha mãe ajudar as pessoas, que chegavam com seus problemas, pedindo uma reza. Ela pegava sua Bíblia e ia lá benzer. Minha mãe enfrentou muito homem violento, que batia em mulher. Homens possessos. Podia não ter cultura, no sentido acadêmico, mas sempre soube as palavras. Demorei muito para mostrar minhas letras, e para mostrar para ela, porque tinha medo de não ter a sabedoria da minha mãe. E, cara, eu comecei muito por baixo. Venho da quebrada, p..., onde neguinho toma pau e morre só por estar ali. Então ter essas oportunidades é do c.... Gente como eu, que ainda vive como eu vivi, se mira e vê que tudo é possível. Acorda, c....

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Com seu canto, você fala muito em saúde e educação. Educar-se para a vida, como você se educou para sua música e agora para ser ator. É o que importa? Talvez não seja tudo, mas é muito importante. Já vivi no ódio, mas é uma pegada que já superei. Não quero viver assim, odiando, dividindo. Quero somar. Olha esse horror que foi a chacina em Paraisópolis. O povo querendo se divertir, do jeito que pode, querendo ser feliz, e os homens chegam barbarizando. E não é a exceção, é a regra. Todo dia há uma juventude negra, e pobre, e excluída que paga o preço da injustiça, de não ser nada para quem tem tudo. Não existem dois Brasis. Temos de lutar contra isso, contra essa mentalidade.

O que atuar trouxe para você? É um campo novo, e eu gosto. Você está ali de corpo presente, mas encarnando uma outra coisa. No início, como eu disse, fiquei acanhado. Vou dar conta? Mas depois que você relaxa, é f... Atuar é uma forma de entender os outros e descobrirmos a nós mesmos. / L.C.M.

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