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O filme ‘Mercuriales’ fala da estranheza do mundo atual

Longa do francês Virgil Vernier mostra o cotidiano de duas moças, usando de linguagem forte e original

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Paris é uma cidade de prédios baixos, com algumas exceções como a Torre de Montparnasse. Mas, em sua periferia, pululam edifícios gigantescos. Como as torres gêmeas Mercuriales, em Bagnolet, que emprestam nome a esse segundo longa-metragem de Virgil Vernier.

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Um filme inquietante, é o mínimo que se pode dizer e que, vez por outra, tira o solo dos pés do espectador e o mantém em saudável atitude de expectativa e curiosidade. Como um ouvido musical que escuta uma sequência dissonante e espera a consonância que a “resolva”, mas esta talvez não venha.

No começo, a câmera concentra-se sobre um candidato a vigia dos edifícios, que é apresentado a toda a parafernália de segurança eletrônica do mundo contemporâneo. Essas sequências servem apenas como “prefácio” à apresentação das protagonistas: duas jovens, uma francesa, outra vinda da Moldávia, que trabalham nos edifícios comerciais e se tornam amigas. São elas Lisa (Ana Neborac) e Joane (Philippine Stindel), que ocuparão a cena ao longo do filme.

São ambas muito jovens. Muito bonitas e parecidas, como se fossem irmãs, da mesma forma que os prédios são gêmeos. Conhecem-se durante uma pausa no trabalho, depois tornam-se amigas, companheiras de festas, ficam próximas, muito próximas mesmo, como às vezes se insinua. Mas nada é explícito. Perambulam, vão a festas, a uma boate, hospedam-se na casa deixada pelo avô de uma delas, e assim por diante.

Por um lado, há uma camada do filme que poderíamos chamar de “sociológica” e consiste em observar, sem traço de julgamento negativo, a juventude um tanto sem rumo. Não há projeto. Aliás, o “projeto” é curtir a vida, o que vai de acordo com certa anomia capitalista, da qual as torres gêmeas de Bagnolet são emblema. Feiosas, sem identidade, imensa colmeia de escritórios, abrigam uma multidão de seres anônimos. Nada que seja destoante em nossas culturas contemporâneas, nas grandes cidades obscuras e sem alma.

Dessa multidão, Vernier destaca essas duas jovens. Segue seus passos, como num cinema de observação. Percebe-se que elas convivem com personagens que não são atores profissionais, mas, sim, figuras do mundo real, como se desafiassem fronteiras entre a ficção e o documentário.

Mas esse tom “social” é apenas outra das camadas desse filme intrigante. Porque, à medida que vamos seguindo as jovens, entramos num clima um tanto alucinatório, como se o cineasta estendesse pontes entre o presente e um passado remoto. Há inserções de cenas festas pagãs da Moldávia, como intrusões do arcaico no presente. A música ajuda a criar esse clima insólito. Aos poucos, o espectador é convidado a mergulhar em algo que vai um pouco além do presente desencantado no qual vivem as pequenas funcionárias Lisa e Joane. Deixar-se levar por esse fluxo narrativo é uma experiência cinematográfica e tanto.

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Vernier é tido como grande promessa do cinema jovem francês. Mercuriales é seu segundo longa, o primeiro de ficção. O anterior é Orléans, documentário visto como pouco comum sobre a cidade francesa celebrizada por Joana D’Arc. A heroína que ardeu na fogueira é símbolo da nacionalidade francesa. As jovens de Mercuriales fazem parte de um mundo alheio a qualquer identidade. No entanto, movem-se sobre as ruínas de um passado que retorna de forma enigmática. O filme é surpreendente. 

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