"O Filho Adotivo" revela costumes do Quirguistão

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Por Agencia Estado
Atualização:

Sim, no Quirguistão também se faz cinema. E cinema de alta qualidade, como pode comprovar quem for assistir a O Filho Adotivo, do estreante Aktan Abdykalykov. Nesta antiga república soviética, fala-se quirguizi, a sociedade (pelo menos a parte dela que aparece no filme) é predominantemente rural. E o cineasta coloca sua ênfase nos costumes do seu povo, como se agisse no papel de antropólogo em sua própria casa. A descrição, praticamente etnológica, é seguida pela estratégia de sobrevivência adotada no campo. Segundo uma antiga tradição, os pais de uma família numerosa devem doar um dos bebês a um casal sem filhos. Uma espécie de redistribuição da fertilidade, que não se processa sem conseqüências, apesar de todo o ritual que a cerca. Segundo esse ritual, para que a adoção se processe, a criança deve passar pelos joelhos dobrados de cinco anciãs da aldeia. Recebe o nome complementar de Beshkempir, que significa "cinco velhas senhoras". Azate é o nome do menino adotado, que atinge a pré-adolescência sem saber de nada sobre sua origem. O filme se monta em três tempos. No primeiro a descrição da vida cotidiana. No segundo, a crise, com a descoberta da adoção. No terceiro, a reconciliação com os termos da socialidade, num outro tipo de síntese. Trata-se de uma distinção didática, porque a ênfase etnológica está presente do início ao fim. Abdykalykov procede como se estivesse apresentando uma realidade exótica. Há um detalhismo consciente na maneira como os costumes locais são expostos ao espectador. Bem, há particularidades. Mas há, sobretudo, reconhecimento da universalidade. Por exemplo, aquela molecada brincando na lama, mexendo com uma colméia e depois tendo de fugir do vespeiro, rivalizando-se na conquista da adolescente mais bonita do lugarejo, etc, poderia estar acontecendo nos cafundós do Quirguistão, no interior de Minas ou em alguma cidadezinha perdida nos limites de São Paulo. Meninos do campo são um caso à parte. Eles se parecem no mundo todo. Nas mesmas brincadeiras, na curiosidade, nos olhos tristes, naquela mesma roupa que é usada semanas a fio, até ficar encardida. Há algo de muito parecido também na maneira como Azate fica sabendo que é adotado, e no preconceito de que é vítima. O fato de ser filho adotivo lhe é lançado na cara como um insulto, por alguém a quem derrotara numa briga. E a revelação é recebida da mesma maneira, a ponto de perturbar totalmente a vida de um pré-adolescente. Ou seja, de alguém que começa a descobrir o sexo como possibilidade real (o sexo, como horizonte virtual, está presente desde a infância, como sabe qualquer freudiano de botequim) e vê inclusive esse aspecto momentaneamente perturbado. No terceiro momento, é a morte que interfere numa situação de impasse e, paradoxalmente, é a perda de uma pessoa querida que garante a Azate o reingresso em uma ordem. Como se fosse necessária essa morte para que velhas regras fossem acionadas e permitissem ao garoto se reequilibrar. Visto assim, o filme parece ainda mais inteligente e sensível do que à primeira vista. Olhado de relance pode aparecer uma exposição didática de uma sociedade diferente da nossa que quer se apresentar ao mundo. Depois, somos fisgados por uma realidade que, se reconhece é diferente porém bem parecida com a nossa. Por isso simpatizamos com ela e estamos prontos a aceitar suas premissas. Estamos prontos para ver como essa aldeia distante no tempo e no espaço é capaz de reajustar seus desequilíbrios. E ficamos fascinados ao perceber que seus mecanismos são humanos, eficientes e originais na superfície quanto familiares quando vistos de perto. Se fosse só isso O Filho Adotivo seria apenas um ensaio frio sobre a universalidade da forma humana de gerenciar conflitos. No entanto, Abdykalykov passa desse costume em particular - a adoção como prática ritual - para aquilo que pertence à humanidade como um todo. A crise de identidade, a incerteza diante do sexo, a rivalidade com aqueles que são próximos, a obediência e o autoritarismo, a palavra final da natureza, que é sempre a morte - são todas continências de qualquer ser humano. Todos têm de repassar pelos mesmos caminhos ainda que por estilos e modos de ser diferentes. E Abdykalykov faz isso com imensa sensibilidade. Despojando toda a ação de qualquer elemento acessório, a não ser o uso esporádico da cor num filme predominantemente em preto-e-branco. A cor explode nos momentos em que a felicidade é mais evidente. Nas cores de um tapete, ou no colorido da plumagem de um pássaro. Ou no rosto da garota preferida do protagonista. Muito, muito bonito. O Filho Adotivo (Bashkempir) - Drama. Direção de Aktan Abdykalykov. Quirguistão - Fr/98. Duração: 81 minutos. Cinceclube Vitrine, às 14 horas, 15h30, 17 horas, 18h30 e 20 horas. Sala UOL, às 18h50 e 20h20. Livre.

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