O essencial de Sade ficou de fora

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Por Agencia Estado
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O marquês de Sade foi, como se sabe um tipo dos mais estranhos. Libertário e libertino, autor de livros chocantes como Justine ou A Filosofia na Alcova, passou boa parte da vida no hospício de Charenton. Aliás, segundo Michel Foucault (em seu A História da Loucura na Idade Clássica), Sade é um caso exemplar e marca uma divisão de épocas: seu "caso", a sua licenciosidade, deixa de ser considerado assunto de polícia e passa ao domínio médico. A normalização de comportamentos inaceitáveis torna-se tarefa de uma disciplina científica, a psiquiatria. Esse contexto, e mais o da Revolução Francesa, estão por trás da história de Sade. Pouco disso, no entanto, se vê neste Contos Proibidos do Marquês de Sade, de Philip Kaufman. Quills ("penas", no original) gravita em torno de uma única idéia: a de que todo criador tem o direito a se expressar. Não pode ser impedido de registrar o que pensa e sente e tem direito de levar sua produção ao público. Primeira Emenda da constituição americana, mas na França pós-revolucionária ela não vigorava. Kaufman mostra Sade (Geoffrey Rush) já internado em Charenton, instituição dirigida por um sacerdote tolerante, Coulmier (Joaquim Phoenix). Os confortos da prisão são franqueados ao nobre, que come e bebe do melhor e ainda exerce o direito de escrever seus contos obscenos - desde que não os publique. Mas Sade conta com a cumplicidade da bela Madeleine (Kate Winslet, de Titanic, agora em papel adulto) para levar seus escritos ao editor. A boa vida acaba com a chegada do Doutor Royer-Collard (Michael Caine) a Charenton. Adepto de meios mais repressivos, ele irá transformar a vida de Sade em um inferno. Mas o pior, para o marquês, acabará vindo de um antigo aliado, Coulmier. O filme é adaptação de uma peça escrita por Doug Wright. O próprio Wright escreveu o roteiro para Kaufman. Segue, aproximativamente, a verdade factual. Sade, de fato, esteve internado em Charenton, e foi perseguido por Royer-Collard, médico encarregado por Napoleão de domar a pena daquele nobre devasso. Há muito de invenção também, incluindo as circunstâncias da morte de Sade mostradas no filme. Mas entende-se que, para os propósitos barrocos de Kaufman, tais modificações mostraram-se essenciais. Enfim, quis-se retratar Sade como escritor às voltas com o obscurantismo, o que de fato ele foi. Mas não é tudo. E talvez essa luta contra a censura nem seja o essencial dessa vida tão peculiar. Sade foi o que se pode chamar de artista maldito. Seus escritos são difíceis de tolerar até hoje. Autor muito estudado e pouco compreendido, foi buscar na sexualidade aquilo que ela tem de limite, com o caos, com o abismo, com a morte. Exorcizava assim seus demônios, trancafiado numa cela. Essa dimensão radical da obra de Sade raramente é mencionada, ainda mais no cinema comercial. Quem a captou, de fato, foi Pasolini em seu quase insuportável Salò, adaptação de outra obra do marquês, Os 120 Dias de Sodoma. Mas Pasolini é de outro departamento.

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