‘O Diabo Entre as Pernas’ e ‘Joana D’Arc’ misturam profano e sagrado em obras sublimes

Em exibição na 43.ª Mostra de Cinema, filmes compensam temáticas difíceis e ritmo lento, com uma estética e direção bem apuradas

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Outra noite de gala na Mostra. Depois do tapete vermelho para Fernanda Montenegro, no Theatro Municipal, na exibição de A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, a 43.ª edição do evento destaca nesta quinta, 24, no início de sua segunda semana, a participação do israelense Amos Gitai. Após a exibição da versão restaurada de Laços Sagrados – Kadosh, o vencedor do Prêmio Leon Cakoff participará de um debate com o público. Grande Amos. Além de amigo da Mostra, é amigo do palestino Elia Suleiman, que receberá o prêmio Humanidade e terá seu novo longa (O Paraíso Deve Ser Aqui, premiado em Cannes, em maio) exibido na sexta, 25.

A atriz Lise Leplat Prudhomme vive uma Jeanne um tanto quanto intemporalno filme 'Joana D'Arc', deBruno Dumont: Foto: Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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A Mostra promove o diálogo. É da sua natureza, está no seu DNA. Com um total de 327 filmes de 65 países, privilegia a produção brasileira, com cerca de 60 títulos. Pode ser arriscado cravar a afirmação que você vai ler agora, mas nesta quinta, talvez, teremos os melhores filmes até agora. Dois entre 327? São filmes em tudo diferentes e que, no entanto, têm muito em comum. O mexicano O Diabo Entre as Pernas, de Arturo Ripstein, em preto e branco, e o francês Joana D’Arc, de Bruno Dumont, em cores. Um casal de velhos no inferno do desamor e as batalhas da “pucelle”, a donzela que foi queimada como herege na fogueira e reabilitada como santa da Igreja Católica. O profano e o sagrado. O casal degrada-se para fazer sua ascese. A donzela, sobre-humana, tem certeza até quando parece duvidar.

Embora sem o respaldo da Academia de Hollywood, Ripstein compete com Carlos Reygadas pelo título de maior cineasta mexicano vivo. Não faz filmes de Oscar, como Alejandro González Iñárritu, Guillermo del Toro e Alfonso Cuarón. Sua pegada é muito mais intensa. Com roteiro da habitual Paz Alícia Garciadiego, sua mulher, o diabo entre as pernas é o sexo que consome um casal de velhos. Ele tem uma amante, agride verbalmente a mulher, que foi, no passado, uma espécie de bela da tarde. Fazia sexo com vários homens, todos os homens. Por prazer, não dinheiro. E agora ela mantém o ardor, o fogo entre as pernas. O casal vive nessa casa como dois estranhos. E tem a doméstica, uma jovem que poderia ser filha deles, e que interfere na relação.

Uma mulher em chamas. A exacerbação do desejo e da violência. Ripstein fez o seu Império dos Sentidos, sem sexo explícito, mas com muito implícito. Fez também, de certa forma, o seu Roma – que a Academia não vai premiar. É muito forte. Demais. Ripstein e o melodrama. Ele subverte cânones do gênero com seu cinema ‘hiper’ (realista ou naturalista?). Em vez do mar bravio no desfecho do Cuarón, a tormenta é interna, dentro da casa. O desejo aplaca-se? Eis a questão.

Joana D’Arc. Bruno Dumont já havia feito, em formato musical, Jeanette, sobre a infância de Joana D’Arc. Jeanette e a vocação que impulsiona a menina de Orleans a repor o delfim no trono da França, disputado pelos ingleses. Dumont mantém a atriz – Lise Leplat Prudhomme –, mas, desta vez, abre mão do musical, exceto por quatro canções que são pontuais dentro do filme. Uma delas é interpretada pelo próprio compositor Christophe, metamorfoseado em grande inquisidor da donzela. A última é cantada por Lise, antes da fogueira – que Dumont filma de longe, na natureza. Se o primeiro filme era Jeanne e as vozes, o segundo é Joana e as batalhas, mas elas não aparecem, somente suas consequências. O máximo que Dumont se permite é filmar do alto, em plongê, uma parada militar. 

Para extrair de Juliette Binoche sua interpretação sublime como Camille Claudel, em 2015, Dumont mostrou-lhe, e discutiu muito com ela, o martírio de Falconetti, no clássico de Carl Theodor Dreyer, de 1928. Conta a lenda que Dreyer enlouqueceu a atriz para que ela desse a dimensão que ele queria à sua Joana D’Arc. Houve muitas Joanas depois – Ingrid Bergman, nos filmes de Victor Fleming e Roberto Rossellini; Jean Seberg, no de Otto Preminger; Milla Jovovich, no de Luc Besson; Sandrine Bonnaire, no díptico de Jacques Rivette. Dumont conclui seu díptico com Lise, uma pré-adolescente.

No filme, os inquisidores a tratam como ‘enfant’, criança. Ela os exaspera com seu discurso. O silêncio de Deus substitui as vozes, mas ela mantém o voto. Libertar a França dos ingleses, dar o trono a quem é de direito. Desafia a Igreja, o rei. Dumont lixa-se para o anacronismo do filme, ou para a acuidade histórica. Sua Jeanne é um tanto intemporal, e ele se interessa pelo o que essa garota que lutou feito homem e atravessou os poderes temporal e religioso pode significar para o público de 2019. Em vez da exacerbação do desejo de Ripstein, a sublimação. Ao fogo do desejo, o da purificação e do conhecimento. Garota em chamas.

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Muita gente saiu durante a sessão de Jeanne/Joana D’Arc na terça-feira à noite. Espectadores também abandonaram, à tarde, a sala de exibição do Ripstein. São grandes filmes, mas não são fáceis. Exigem do público para entregar sua particular satisfação estética. Não são exatamente lentos, mas possuem um tempo, o tempo deles. Para quem entra no clima, o resultado é divino.

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