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‘O cinema revela que não mudou a condição humana’, diz cineasta russo Alexander Sokurov

Diretor vencedor do Leão de Ouro em 2011 diz não fazer conexão política entre a guerra na Ucrânia e seu novo longa sobre Stalin e Hitler

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

Ucrânia e Vladimir Putin só entram na fala do cineasta russo Alexander Sokurov como signos de uma gangorra democrática que, segundo ele, expõe a fragilidade por trás de um aparato eleitoral. “A Rússia está vivendo um dos piores momentos da História e há muita complexidade por trás de Putin e, sobretudo, de quem o apoia”, diz o realizador de 71 anos, na ativa desde 1974, laureado com o Leão de Ouro de Veneza em 2011, por Fausto.

Diretor russo Alexander Sokurov em Locarno: situação da Rússia 'já era previsível em 2007'. Foto: Urs Flueeler/EFE/EPA

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A volta dele às telas acontece no Festival de Locarno, na Suíça. Iniciada no dia 3, a 75.ª edição do evento incluiu na disputa pelo Leopardo de Ouro o experimento que o diretor russo fez com base em imagens de estadistas ligados à violência: Skazka - que corre o mundo com o título em inglês Fairytale (‘Conto de Fadas’). É uma delirante alegoria sobre Stalin e Hitler num purgatório onde os dois vivenciam um processo de entendimento da Eternidade, do Divino e das bestialidades cometidas na Segunda Guerra. Sokurov garantiu ao Estadão que não há qualquer conexão política entre o filme e a ofensiva de Putin ao povo ucraniano. Mas faz, na conversa, um balanço da Rússia de hoje. 

Como o senhor vê o papel de Putin na Rússia?

Tudo o que estamos passando hoje já estava em Tolstoi, nas páginas de Guerra e Paz. Se você o reler, verá que lá estão a Primeira e a Segunda Guerras e esse conflito que põe o povo russo num dos piores desafios da história. Temos que analisar quem Putin é, a pessoa que se tornou e as pessoas que o sustentam no poder. Lá por 2007, enfrentamos uma série de situações que já apontavam para essa guerra de hoje. Já sabia que ela ia ocorrer. 

Que arquétipos o sr. buscou na representação de Stalin e de Hitler?

Tudo o que você ouve no filme vem de depoimentos colhidos em documentos. Ou seja, tudo é real. Não é uma animação, pois não lido com imagens de arquivo criando situações do nada. Procuro retratar o que sabemos dessas pessoas, deslocando-as de sua condição de poder. Hitler está triste e Stalin parece cansado, esperando saber quando a morte vai chegar. Isso porque eles se encontram num estado de tortura eterna no filme. Meu foco foram as figuras políticas proeminentes do século 20.

A presença de Hitler em 'Moloch' e agora em 'Fairytale' mostra que seu cinema sempre se interessou pela figura do mal, vide o diabo e Fausto. Que maldade atrai seu olhar?

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Nos tempos de Dante, da Divina Comédia, o Mal era representado a partir da ideia da punição. A Maldade tinha uma paga, um preço. Hoje, num mundo onde a corrupção nos ronda, quem será o juiz a condenar o Mal? Veja um exemplo, Napoleão Bonaparte, na França. Ele matou milhares de pessoas, invadiu países, desrespeitou sociedades. Ele se enquadra na concepção histórica do Mal. Mas, hoje, é visto como herói.

Não creio que o cinema possa mudar o curso da vida. Mas pode gerar uma trilha de entendimento. O cinema revela que não houve mudança na condição humana.

De que forma o cinema pode desafiar a corrupção?

Ele não é capaz disso. Em seu tempo, (Ingmar) Bergman mudou a nossa imaginação com seus filmes. Não creio que o cinema possa mudar o curso da vida. Mas pode gerar uma trilha de entendimento. O cinema revela que não houve mudança na condição humana. No cinema, o que eu busco é encontrar formas novas de representar ideias das quais me torno cúmplice. 

Seria aí que entraria o papel da palavra no seu cinema? Por mais que sejam transgressores em sua experimentação imagética, seus filmes não dispensam a força do verbo. Por quê?

A palavra tem um poder essencial na construção de sentido das convenções humanas. Na construção do cinema que eu faço, ela tem um lugar essencial, pois é mais difícil criar com elas do que com imagens.

O sr. também participa do festival de Locarno com um curta em que fala de sua relação com Andrei Tarkovski. O que o sr. aprendeu com o diretor de 'Nostalgia' e 'Solaris'?

Nosso convívio não incluía aprendizados. Não falávamos de cinema, embora ele gostasse do que eu fazia. Não sei se fui digno do carinho dele, mas foi um amigo a quem amei muito.

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