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O cinema de Sganzerla, por Luiz Zanin Oricchio

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Por Agencia Estado
Atualização:

Poucos filmes são tão paulistanos quanto O Bandido da Luz Vermelha, do cineasta Rogério Sganzerla, que morreu hoje. No entanto, Rogério não era nascido aqui. Vinha de Joaçaba, em Santa Catarina, mas chegou a São Paulo nos anos 60, época de grande efervescência cultural e política. Era assim natural que em seu longa-metragem de estréia usasse a metrópole como palco, como motivo e essência desse primeiro e genial ensaio artístico. O corpo de Rogério, que tinha um tumor cerebral, será cremado amanhã na Vila Alpina. Mas suas cinzas serão levadas para sua terra natal, segundo desejo da viúva, a atriz Helena Ignez, com quem Rogério teve duas filhas, Sinai e Djin. Sganzerla estava doente havia tempo, como se sabia no meio cinematográfico. Uma de suas últimas aparições públicas foi no Cine Odeon, durante o Festival do Filme do Rio. Rogério, que não podia mais andar, foi conduzido de cadeira de rodas para assistir à pré-estréia de Filme de Amor, do seu amigo Julio Bressane. Foi aplaudido e homenageado pela platéia. Na saída, conversou com outro amigo, o cineasta Ruy Guerra. Comovido, Ruy disse depois à reportagem que falara de cinema com Sganzerla. "Ele está perfeitamente lúcido, 100% lúcido, e com o corpo devastado", disse Guerra, comovido. Há um motivo especial para a amizade entre os dois cineastas. Rogério entrou no cinema pela porta da crítica. Ainda muito jovem, foi acolhido por Décio de Almeida Prado, que na época dirigia o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, e seu texto de estréia foi sobre Os Cafajestes, filme de Ruy Guerra de 1962. Continuou no Suplemento e colaborou também com o Jornal da Tarde. Sempre escrevendo sobre cinema. O exercício da reflexão sobre filmes levou-o à realização. Rodou um curta-metragem, Documentário, e em seguida partiu para seu primeiro longa, O Bandido da Luz Vermelha. O ano era 1968 e o impacto de lançamento foi grande. Nele, Rogério cozinhava uma série de influências que iam do cinema da nouvelle vague à obra de Orson Welles. Incorporava um tipo de narrativa popular a citações mais cultas e promovia um sincretismo cinematográfico como nunca houve igual. O filme era devastadoramente novo e surpreendente. Ali estava um cineasta a ser observado, um "autor", como se dizia então, na melhor acepção do termo. Na mesma linha veio em seguida A Mulher de Todos, estrelado por Helena Ignez. Vieram em seguida filmes como Sem Essa, Aranha, Copacabana, Mon Amour, Carnaval na Lama, Fora do Baralho, Abismu. Trabalhos de ruptura, feitos com poucos recursos e menor ainda inserção em um mercado progressivamente conservador. São obras que exigem ainda uma reavaliação crítica, que certamente surgirá com o desaparecimento do cineasta. Orson Welles, referência desde o primeiro longa-metragem de Sganzerla, passou em seguida a ser a sua verdadeira obsessão. Foi em torno da viagem de Welles ao Brasil, em 1942, que Sganzerla construiu o imaginário de toda essa metade final de sua obra. De fato, a viagem é emblemática. Welles veio ao Brasil como parte da política de boa vizinhança de Roosevelt que procurava aliados para a guerra contra a Alemanha. O Estado Novo de Vargas era oscilante. Pendia ora para um lado, ora para outro. Welles chega para filmar o carnaval e as belezas do País. Faz amizade com Herivelto Martins e Grande Otelo. Sobe às favelas e registra um movimento de jangadeiros que reivindicavam direitos trabalhistas. É chamado de volta aos Estados Unidos e perde a confiança dos estúdios. Seu documentário, It´s All True, ficou inconcluso. Em suas biografias, Welles sempre falava de sua fatídica viagem ao Brasil. Sganzerla via nela uma metáfora mais do que interessante sobre o relacionamento do brasileiro, com o estrangeiro, o "outro". Definia a nacionalidade a partir daí. E inspirou-se nessas idéias para rodar Nem Tudo É Verdade, Tudo É Brasil, e seu último filme, O Signo do Caos, apresentado em novembro no Festival de Brasília. Rogério ganhou as estatuetas de montagem e direção. Mas não pôde comparecer à capital para recebê-las. Representando-o, sua filha Djin relatou no palco, uma conversa que tivera com o pai. Rogério, já bastante enfraquecido, disse à filha que só o cinema poderia salvá-lo àquela altura. Mas o cinema que, quando praticado por um artista como Rogério tanto bem pode fazer à humanidade, infelizmente não tem esse poder.

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