'O cinema brasileiro tem uma tradição épica', diz Fernanda Montenegro sobre indicação ao Oscar

Atriz está em 'A Vida Invisível', de Karim Aïnouz, filme indicado pela Academia Brasileira de Cinema ao Oscar

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Reunida na manhã desta terça, 27, na sede da Cinemateca Brasileira, a comissão formada pela Academia Brasileira de Cinema, presidida pela cineasta Anna Muylaert, escolheu A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, como o candidato do Brasil para concorrer a uma vaga no próximo Oscar de melhor filme internacional – a nova designação para o filme em língua estrangeira. Na tarde de segunda, 26, no Rio, houve um encontro do diretor Aïnouz com sua (grande) atriz, Fernanda Montenegro. O Estado estava lá e acompanhou a dupla, com exclusividade. Foi emocionante. O cenário não era uma sala de cinema, mas a plateia do Teatro Oi Casa Grande, no Shopping Leblon.

Fernanda Montenegro e o diretor Karim Aïnouz, de 'A Vida Invisível' Foto: Wilton Junior/Estadã

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Havia, no ar, a expectativa de que A Vida Invisível pudesse ser o escolhido. Embora a lista de inscritos fosse formada por 12 títulos, dois concentravam a disputa, justamente o longa de Aïnouz e Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Fernanda conversou com o repórter e seu diretor sem ter visto ainda o filme. Só o verá na sexta, 30, quando A Vida Invisível abrirá o Cine Ceará e o diretor vai receber a homenagem do festival. O filme é uma adaptação do livro de Martha Batalha. A história de duas irmãs separadas pela intransigência de um pai machista. Fernanda entra no final, algo em torno de 15 minutos, que ela marca com sua presença poderosa. Pode-se dizer que o filme, que é bom – venceu a mostra Un Certain Regard, em Cannes –, tem aí um upgrade. Fernanda já concorreu ao Oscar de melhor atriz – por Central do Brasil, de Walter Salles, há 20 anos. Poderia muito bem concorrer de novo, agora como melhor coadjuvante.

Fernanda destaca um aspecto fundamental em A Vida Invisível. “É o ser ou não ser, nosso dilema existencial, hamletiano. O cinema brasileiro tem uma tradição épica muito forte. Glauber (Rocha), a consciência política e social. Esse contexto é decisivo na história de Eurídice (Gusmão), mas o viés do filme é o intimista, o pequeno, o reverso da grande História.” Mesmo sem ter visto o filme, Fernanda sacou tudo a partir do roteiro. O diretor conta. “Esse filme está muito ligado à figura da minha mãe, à perda dela. Quando ela morreu, no enterro havia todas aquelas amigas, e eu não conseguia parar de pensar naquela geração de mulheres, no que tiveram de enfrentar. Cheguei a escrever um texto, uma folha, para que as pessoas que eu estava chamando para o enterro soubessem quem foi aquela mulher.” Foi assim que chegou ao livro. “Conversava muito com (o produtor) Rodrigo Teixeira, sobre o filme que poderíamos fazer. Quando li o livro, me pareceu perfeito. Não conseguiria imaginar uma história melhor.”

Perfeito, mas complicado. “É uma história muito extensa, que acompanha suas personagens por décadas. Daria uma minissérie e eu já fiz minissérie. Não queria repetir a estrutura em capítulos. Queria um filme para cinema. Foi difícil, mas achei a forma de contar minha história. Queria um melodrama, mas um melodrama moderno, na tradição revista do (Rainer Werner) Fassbinder.” E Fernanda Montenegro – “Tenho a impressão de que, às vezes, as pessoas se assustam com essa coisa do melodrama, da emoção. Mas, para permanecer no ser ou não ser, o que é Hamlet senão um melodrama? O fantasma do pai cobrando vingança contra a mãe adúltera e seu amante. Olha o Dostoievski, o que existe de melodramático em Crime e Castigo. O problema não é o melodrama, é o ser piegas.” E Aïnouz – “Pode não significar nada para os outros, mas para mim significa muito. Fernanda é do mesmo ano da minha mãe, 1929. Foi sempre um sonho trabalhar com a Fernanda, para mim. Sempre vi nela, como atriz, uma força e uma humanidade que também encontrava em minha mãe. Nunca vi minha mãe chorar, queixar-se da vida. Ela não tinha tempo para essas lamúrias. Tinha os filhos para criar, alimentar, educar.”

Karim Aïnouz acaba de fazer, na Argélia, um filme sobre seu pai – esse pai que ele só conheceu aos 20 anos. “É um filme sobre a cidade do meu pai. No Ceará, eu era o único Aïnouz. Cheguei a esse lugar e no cemitério havia um monte de lápides com o nome de Aïnouz. Foi como chegar a um lugar de pertencimento.” Como diretor de grandes filmes – Madame Satã, O Céu de Suely, Praia do Futuro –, ele está sempre tentando testar seus limites e os de seus colaboradores. Explica a cena, dirige os atores, obtém deles o que quer e aí muda tudo. “O importante é tirar o ator da sua zona de conforto.” Fernanda conta – “Ele vai dizendo ‘Assim, assim’ e, de repente, muda tudo, está levando a gente para outro lado. ‘Agora vamos tentar assim, e assim.’ Como atriz, esse é meu território (aponta o palco). No cinema, sou matéria-prima do diretor. Ele manda e eu obedeço. ‘Sim, meu senhor’ (e Fernanda curva-se, o que provoca uma sonora gargalhada de Aïnouz). Mas é – sou a própria sacerdotisa de Amon.” 

Durante todo o tempo, enquanto conversam, Fernanda e o diretor avaliam o momento atual do cinema brasileiro. “É um momento excepcional, em que os filmes brasileiros alcançam reconhecimento em toda parte. Só aqui somos maltratados, hostilizados.” Mais que queixa, há um tom de decepção na voz da grande Fernanda. “Seria tão bom uma palavra de reconhecimento.” Um afago. “É uma questão de civilidade. Temos direito de ser críticos. Isso não nos transforma em inimigos. Se alguém prega o ódio, não somos nós.”

Repercussão

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O diretor Kléber Mendonça Filho, de Bacurau, principal concorrente de A Vida Invisível na disputa pela indicação ao Oscar, se manifestou e parabenizou Karim Aïnouz:

Análise

Havia o consenso de que dois filmes polarizavam a disputa pela indicação do Brasil para concorrer a uma vaga no Oscar – Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que estreia nesta quinta, 29, e A Vida Invisível, adaptado do livro de Martha Batalha. O longa de Karim Aïnouz inaugura nesta sexta, 30, o Cine Ceará. Em outubro, terá direito a uma gala da Mostra de Cinema no Theatro Municipal, em São Paulo. Fernanda Montenegro e o diretor já confirmaram presença. Na sequência, dia 31, A Vida Invisível estreia nos cinemas. No Nordeste, estreia antes – dia 19 de setembro.

O Canal Brasil é parceiro, com a Sony e a RT (de Rodrigo Teixeira) Features. A distribuidora é a Vitrine. Nos EUA, será distgribuído pela Amazon. Em maio, o filme venceu a mostra Un Certain Regard, em Cannes. Na entrevista, Fernanda Montenegro destaca a pegada hamletiana, existencial do filme. O ser ou não ser de duas irmãs que lutam para afirmar sua identidade num Brasil machista. Uma das irmãs apaixona-se por um marinheiro e foge com ele para a Grécia. Volta grávida, é escorraçada pelo pai. A outra irmã lhe escreve cartas cobrando a ausência, o silêncio, sem saber que ela está ali, o tempo todo, na mesma cidade. Envelhecem, as cartas ressurgem e a sobrevivente, Fernanda Montenegro, encerra o sentido da obra.

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Fernanda aparece só no fim. Quando jovens, as irmãs são interpretadas por Carol Duarte e Júlia Stockles. A mãe solteira dá murro em ponto de faca para criar a filha. A que sonhava ser pianista abre mão do sonho. O pai, o marido são opressores dessas mulheres. Aïnouz encara o melodrama à maneira de Rainer Werner Fassbinder, ou seja, criticamente. Radicaliza a questão do machismo. No mundo dominado pelo falus, brinda o público com uma imagem que seria impensável nos velhos melodramas. Nem Fassbinder ousou – o pênis ereto do marido, numa cena que deixa claro que o prazer da mulher está fora de cogitação. O objetivo do casamento é outro, a procriação (e ela pode ser complicada).

Karim Aïnouz é um grande diretor, mas pode-se seguir preferindo Madame Satã ou Praia do Futuro, entre seus longas. Pode-se, também, achar que Bacurau talvez representasse melhor o atual momento da sociedade brasileira, mesmo para a plateia do Oscar, que a essa altura tem acompanhado a repercussão internacional sobre o Brasil no concerto das nações. O importante é que Bacurau e A Vida Invisível são filmes bons. Um dia saberemos quem foram os votantes dos cinco a quatro. Agora, só cabe esperar pelo apoio do governo à campanha do escolhido para representar o Brasil. E, sim, os dez ou 15 minutos de Fernanda Montenegro são mágicos. Aïnouz sabe filmar as mulheres e com uma atriz assim tão grande toca o sublime. Meritória a cinematografia que pode criar esses momentos de exceção.

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