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‘O Cavalo de Turim’ chega com atraso ao Brasil e será um dos destaques de 2016

Filme de Béla Tárr ganhou o Urso de Prata em Berlim há cinco anos, mas só agora estreou nos cinemas brasileiros

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Na entrevista que deu ao Estado sobre seu longa O Filho de Saul – favorito na corrida para o Oscar de filme estrangeiro –, Laszlo Nemes não vacilou quando o repórter lhe perguntou quem era seu mestre. Nemes foi assistente de Béla Tárr. Respondeu: “Béla. Tudo o que sei sobre arte e vida devo a ele.” Nemes só discordou do repórter na hora de escolher o melhor filme do autor húngaro. Para o repórter é O Cavalo de Turim, que estreou na quinta-feira, 18, nos cinemas de São Paulo. Para Nemes é Damnation, de 1988.

O Cavalo de Turim chega com atraso ao Brasil. Há cinco anos, em outro Festival de Berlim, muita gente apostava que ganharia o Urso de Ouro. Ganhou o de Prata e o prêmio da crítica. Tárr não parecia estar se importando muito. Fizera um filme belíssimo, de um rigor absoluto, mas estava cansado da mundanidade do cinema. Como Krysztof Kieslowski fizera no começo dos anos 1990, na época da trilogia das cores – A Liberdade é Azul, A Igualdade é Branca, A Fraternidade é Vermelha –, anunciou que estava parando. Continua mantendo a palavra, mas usa o prestígio para alavancar a carreira de novos cineastas.

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Desde o começo, Béla Tárr marcou posição com sua atitude não conformista. Dizia que fazia filmes para entender a realidade social. Filmava de forma austera, quase documental. E virou um crítico ácido dos sucessivos governos da Hungria. Em 2011, na Berlinale, falou pouco, mas o que disse teve o valor de um manifesto: “Quero abordar problemas sociais que não sejam de natureza puramente social, mas têm a ver com ontologia e cosmogonia. O ser e o universo, o cósmico. Só isso me interessa e tenho de reconhecer – é tudo. Mas não é o que interessa ao mercado, que condiciona as escolhas do público”. A par de Damnation e O Cavalo de Turim, Tárr formou uma legião de admiradores com Satan Tango e Werckmeister Harmonies. O segundo é menos ‘social’ do que quase tudo que Tárr fez, e elabora o tempo por meio de elementos formais que remetem à música. É outra fala famosa do artista: “Sou incapaz de começar a filmar enquanto não tiver uma partitura.”

O Cavalo retoma elementos formais das harmonias, mas de uma forma ainda mais minimalista e elaborada. O Cavalo do título carrega uma referência ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Numa praça de Turim, em 1889, ele interveio para impedir que um homem, um cocheiro, continuasse batendo em seu cavalo. Depois, abraçou-se ao animal e corou convulsivamente. O episódio ficou conhecido na história da filosofia e da literatura. Do colapso nervoso à alienação mental foi um passo. Nietzsche foi internado. O pensador de Zaratrusta, do super-homem, tornou-se um farrapo humano. Nunca houve muita especulação sobre o que ocorreu com o cavalo – até o filme de Béla Tárr. Rodado em suntuoso preto e branco, dura 150 min. E você pode contar – é narrado em não mais de 30 planos, com a média de duração de 5 min cada. Não acontece muita coisa. Tárr filma o cocheiro de Turim, sua filha e o cavalo. Ele tira o sustento dos transportes que faz com a carroça. Nas notas de produção, o diretor escreveu que o cotidiano de pai e filha deveria ser monótono e opressivo. Ao longo de seis dias, eles quase não falam. E repetem os mesmos gestos.

Durante todo o tempo, e o tempo escoa lentamente, Béla Tárr cria sugestões de uma catástrofe iminente. O vento sibila pelas frestas da construção, a cisterna seca, o cavalo recusa-se a sair do estábulo e um vizinho aparece para anunciar o fim do mundo. Não parece muita coisa, e menos ainda revelador da realidade social italiana no alvorecer do século 20 ou da húngara contemporânea. As informações estão na tela, de forma meio difusa, e o mistério de O Cavalo de Turim vem de outra parte, ou dimensão. Tárr filma o tempo pelos gestos repetidos em diferentes momentos do dia. A filha tem uma dedicação (quase) religiosa pelo pai, e ele está sempre se batendo contra a natureza hostil. Se há um tema em O Cavalo de Turim é essa certeza (metafísica?) de que o ser do homem no mundo independe de sua ação e que devemos contemplar a inevitabilidade da morte.

A sombra de Nietzsche perpassa o filme, que remete a uma tragédia grega, como o filósofo a concebia – diálogo entre o dionisíaco e o apolínio. Instinto e forma, irracionalidade e pureza, escuridão e luz. Por sua construção do tempo, mas também pelo pessimismo da razão, Tárr costuma ser comparado a cineastas como os russos Andrei Tarkovski e Alexander Sokúrov, e o grego Theo Angelopoulos, que erigiu no cinema um monumento fílmico dedicado à investigação das Helenas. Com eles, Tárr compartilha o desencanto do intelectual pela situação do mundo e destruição dos ideais. Todos sofreram perseguições em seus países. O homem, segundo Béla Tárr, não é o bom selvagem de Rousseau, é corrompido pela organização social que preza mais atitudes individuais que projetos coletivos. Nesse mundo competitivo e dinâmico, o personagem de Janos Derzi parece esculpido no mármore. O tempo do filme é subversivo. Tárr usa o cotidiano para levantar questões que o extrapolam. O homem diante do tempo, dos mistérios da vida e da morte. Em plena temporada do Oscar – e com bons filmes como O Regresso, Joy e Spotlight –, Béla Tárr mostra que outro cinema é possível. E crava o primeiro grande filme a ser lembrado no final de 2016.

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