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O adorável envelhecer de ‘Os Camaradas’, de Marin Karmitz

Realizado em 1970, filme propõe na Mostra de SP neste sábado, 17, uma nova imersão na dura realidade social francesa

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Em meio à enxurrada de novidades proposta pela Mostra, que tal escolher, para variar, um “filme antigo”, como Camaradas, de Marin Karmitz?

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Antes de falar diretamente sobre ele, queria precisar o que entendo por filme antigo. Não se trata exatamente de uma questão cronológica.

Cidadão Kane, de 1941, é intemporal, um clássico, atravessa gerações como se fosse novinho em folha – e, no fundo, é mesmo, sempre se propondo a novas leituras e reinterpretações.

Camaradas, de 1970, não tem esse poder do clássico. É uma obra datada, que fazia muito sentido em sua época, mas não conseguiu sobreviver à avalanche neoliberal dos anos 1980 e 1990. Mas talvez aí, justamente, resida seu valor. Porque, vendo-o, sente-se precisamente em que consistiu essa onda liberal do ponto de vista econômico, e conservadora em relação aos costumes, que faz a essência mesma do nosso tempo.

Camaradas, como o título indica, é uma obra de esquerda.

Explicitamente. Seu protagonista, Yan, um jovem de Saint-Nazare, tenta escapar à vida sem horizontes da província é vai tentar a sorte em Paris. Onde a existência também não é nada fácil, apesar da dominância dos clichês românticos associados à cidade.

Yan tenta vários pequenos trabalhos e acaba empregando-se numa fábrica, experimentando o rigor do trabalho repetitivo e “alienado”, segundo o jargão marxista. A experiência o leva para a militância da esquerda. A época é a da greve na fábrica de automóveis Renault, em Billancourt, e a França vive ainda o refluxo do Maio de 1968, quando a Revolução parecia chegar prontinha, a cada manhã de sol de primavera.

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Portanto, Camaradas é um filme de reimersão na dura realidade social, após o arquivamento do sonho de 1968. Mas não se compraz em amarguras.

Pelo contrário, encontra ainda vivo um espírito militante e organizado, que só iria se esvair nas décadas seguintes. Era tempo em que milhares de operários franceses se reuniam à porta da fábrica e cantavam a Marselhesa e a Internacional

O espectador terá motivos para se perguntar como tudo isso pôde desaparecer tão rápido, na poeira do tempo? E esse espanto é mais do que motivo suficiente para se interessar pelo filme. Afinal, os caminhos da sociedade humana são mesmo insondáveis e, quem viveu aquele tempo, ainda se pergunta como discussões tão vivas e acaloradas passaram a fazer parte de uma espécie de museu da História.

Documento precioso daquele tempo, Camaradas vale-se de várias sequências documentais, que se inserem na trama ficcional e compõem o seu tecido. Operários em greve, fábricas tomadas, debates sindicais e até trechos inteiros de um clássico da militância latino-americana, La Hora de los Hornos (A Hora dos Fornos), dos argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino. 

Está tudo lá, nesse coquetel de esquerda: internacionalismo, sentimento de luta de classes, ideias radicais, reuniões intermináveis, batalhas de conceitos e palavras de ordem.

E mesmo uma juventude que parece diferente de todas as outras em todas as épocas, até mesmo fisicamente. Um jeito de se vestir, de fumar, de jogar os cabelos de lado, de sorrir e de falar. Parece outra espécie humana. Basta ver a encantadora atriz Juliette Berto para se convencer de como eram diferentes as moças daquela época. Por falar nisso, ela foi mulher de Glauber Rocha.

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