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Novo filme de Ugo Giorgetti, 'Dora e Gabriel' tem pré-estreia online

Filme pode ser assistido no Espaço Itaú Play; outro filme do cineasta, 'Variações sobre um Quarteto de Cordas', será exibido no canal do Theatro Municipal do YouTube

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Ugo Giorgetti gosta de espaços fechados para encenar suas histórias - basta lembrar de dois dos seus filmes mais conhecidos, Festa e Sábado, ambos passados quase exclusivamente em ambiente único. Mas desta vez ele radicaliza, como poderá comprovar quem assistir a Dora e Gabriel. Seu novo longa pode ser visto em pré-estreia nesta sexta, 26, e sábado, 27, no Espaço Itaú Play. Quando os cinemas forem reabertos, estreará em tela grande.

Cena de 'Dora e Gabriel', novo filme de Ugo Giorgetti Foto: Itaú Cinemas

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Dora e Gabriel, numa primeira leitura, pode ser visto como história de um encontro improvável de um homem e uma mulher. Se você não quer saber como eles se conhecem, pule para o parágrafo seguinte e evite o spoiler. Bem, se ficou por aqui saiba que, na primeira cena, Gabriel (Ary França) é assaltado e forçado a entrar no porta-malas do seu carro. Dora (Nathalia Gonsales), que por acaso passava no local, também é presa pelos assaltantes e vai fazer companhia a Gabriel.

A estrutura básica do filme joga com a construção dramática em seus elementos mínimos. Giorgetti é minimalista. Simplifica a composição para dela obter rendimento máximo, segundo sua concepção estética. Nesse espaço restrito, Dora e Gabriel experimentam uma convivência forçada, incômoda e sufocante, que é também uma situação-limite, na qual a vida corre perigo real.

É também uma situação de medo e angústia, porque eles mesmos (assim como o espectador) dispõem de poucos elementos para julgar o que se passa de fato. Pouca coisa chega até eles e, quando acontece, são apenas rumores, gritos, ou vozes abafadas e ininteligíveis, diálogos cortados, dos quais eles tentam pescar uma ou outra palavra.

Quem é ele e quem é ela? Gabriel é um imigrante libanês. Dora, uma moça bonita, que se define como “autônoma”. Forçados a conversar, a se interessar um pelo outro, essas duas pessoas, que talvez jamais se encontrassem em condições normais, trocam palavras numa situação de intimidade forçada. Mesmo assim, o que dizem é muito alusivo, deixando que os espectadores construam o que julguem ser o caráter dos dois personagens. Maior liberdade interpretativa, impossível.

No entanto, estes personagens também encenam uma configuração de metrópole que nos é bem conhecida, e cuja faceta de violência salta à vista. Dora e Gabriel é, entre outras coisas, também um filme sobre São Paulo e como, nesta cidade, acontecem fatos com os que a história deles conta.

No mais, o filme, em sua economia de meios extrema, remete para a questão filosófica já antes abordada por Giorgetti em outros trabalhos: o quanto de controle de fato dispomos sobre nossas próprias vidas? Nós, enquanto membros de uma sociedade suposta racional e laica, pensamos que tudo pode ser planejado, cronometrado e medido, sem percebermos o engodo de tal pretensão. Vivemos ao sabor dos acontecimentos e, quando menos esperamos, nos encontramos metidos numa embrulhada que jamais poderíamos prever.

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Seguindo os padrões de produção costumeiros, Ugo Giorgetti escala uma dupla de grande intensidade dramática, Ary França e Nathalia Gonsales, ambos com formação teatral. Conta com um craque da fotografia, Walter Carvalho (o paulista, não o paraibano-carioca), capaz de emprestar vivacidade visual a uma situação dramatúrgica ingrata. E temos também o texto enxuto e preciso, como são os da lavra de Giorgetti, quer como roteirista quer como colunista de futebol do Estadão.

Claro que é tentador associar a temática de Dora e Gabriel ao momento em que vivemos no Brasil e no mundo, presas de um jogo político enlouquecido e de uma pandemia que nos obriga ao recolhimento e ao arquivamento de sonhos. E sem qualquer ideia concreta de como será o nosso futuro - se este vier a existir.

O cineasta Ugo Giorgetti, em São Paulo. Foto: Nilton Fukuda/Estadão

No entanto, vale dizer que o projeto é anterior tanto à eleição da extrema-direita no Brasil quanto ao surgimento do novo coronavírus. O que torna ainda mais valioso seu diagnóstico prévio sobre a nossa fragilidade existencial diante do destino e de como tentamos compreendê-lo baseado nos poucos sinais que nos chegam e que somos capazes de decodificar. Trágico, mas esta é a condição humana.

Variações sobre um Quarteto de Cordas

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Tem mais Ugo Giorgetti online, desta vez com um trabalho de 2004, o delicado documentário Variações sobre um Quarteto de Cordas, disponível no canal do Youtube do Theatro Municipal de São Paulo a partir das 20h desta sexta, 26.

O filme tem por personagem o violista alemão Johannes Oelsner, que integrou o Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo por 37 anos. O filme é todo baseado nesta figura incrível, músico que chegou ao Brasil em 1939 como membro do Quarteto de Dresden para uma série de concertos. Surpreendido pela eclosão da 2ª Guerra Mundial, Oelsner acabou ficando por aqui e fincou raízes numa São Paulo que já não existe mais.

Quem o contratou foi Mário de Andrade, então secretário de Cultura de São Paulo. Com seu talento e energia, Oelsner (1915-2010), proveniente do sofisticadíssimo mundo germânico da música, muito acrescentou ao ambiente musical da cidade e do país. Foi amigo de Mário de Andrade e de Villa-Lobos e figura conhecidíssima do mundo musical paulistano. No documentário diz, sem qualquer ironia, que não existe melhor lugar no mundo para morar e trabalhar que o Brasil. São Paulo, em particular.

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E aqui vemos outra faceta do trabalho de Ugo Giorgetti, o grande cronista cinematográfico da cidade. Se em Dora e Gabriel e em outros filmes, como O Príncipe, ele aponta para a distopia de uma metrópole destruída pela violência, pelo ruído e pela especulação imobiliária, em Variações sobre um Quarteto de Cordas é outra a São Paulo que surge aos nossos olhos. A cidade sofisticada, civilizada, amante das artes e da cultura. O que sobrou dessa metrópole? Seria tentador responder que essa São Paulo evocada por Johannes Oelsner através de Giorgetti vive hoje apenas na imaginação, como a casa demolida evocada no poema de Manuel Bandeira. Mas é mais justo admitir que ela subsiste em espaços restritos, em grupos localizados, em pontos exíguos de resistência, como sobras de guerra. Uma dessas sobrevivências é justamente o Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo, cujos 85 anos de existência justificam a exibição deste belo filme.

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