
01 de janeiro de 2020 | 06h51
Prestes a completar 90 anos de idade, em maio, Clint Eastwood continua lançando em média uma produção a cada 12 meses. A mais recente, com estreia no dia 2, é O Caso Richard Jewell, que se encaixa na sua leva de obras sobre heróis comuns e muitas vezes incompreendidos – seja o Chris Kyle de Sniper Americano ou o piloto Chesley Sullenberger em Sully.
Richard Jewell, vivido no filme por Paul Walter Hauser, foi o segurança tornado herói depois de encontrar a bomba plantada durante a Olimpíada de Atlanta, que matou duas pessoas e feriu 111 – se não fosse seu alerta, as vítimas teriam sido ainda mais numerosas. Mas, poucos dias após o atentado, foi acusado de ser o terrorista e teve sua vida destruída. “Eu perguntei a Clint Eastwood por que ele quis fazer este filme agora”, disse ao Estado a atriz Kathy Bates, que faz Bobi, a mãe de Richard Jewell. “E sua resposta foi que era um filme que gostaria de ver e que se tratava de uma tragédia americana.”
Eastwood é respeitadíssimo na indústria e vencedor de quatro Oscars, mas vez ou outra se envolve em polêmicas, seja por suas posições políticas conservadoras pessoais ou até mesmo pela temática de seus filmes – muita gente discorda que Chris Kyle tenha sido um herói, por exemplo. Em O Caso Richard Jewell, as reclamações vêm do retrato da repórter Kathy Scruggs, do Atlanta Journal-Constitution, responsável pela revelação de que Jewell tinha passado de herói a principal suspeito na investigação do FBI. No filme, Scruggs, que morreu em 2001 e é interpretada por Olivia Wilde, parece trocar por sexo a informação do agente do FBI Tom Shaw (Jon Hamm), um personagem fictício, amálgama de diversos investigadores do caso. O Atlanta Journal-Constitution protestou, mas Olivia Wilde, filha de jornalistas, declarou que jamais quis sugerir que Scruggs trocou a dica por uma relação sexual. Para ela, a repórter tinha um relacionamento prévio com sua fonte.
Em 1996, o ciclo de notícias de 24 horas, representado então pela CNN, estava começando a ganhar força. A Fox News seria fundada naquele ano. Na época do atentado, a CNN, cuja sede é em Atlanta, pegou a história publicada pelo Atlanta Journal-Constitution e a amplificou para o país e o mundo. Jewell foi de herói a vilão em questão de dias, apenas porque se encaixava no perfil do homem branco e frustrado – ele ainda morava com a mãe e tentou sem sucesso fazer parte da polícia.
“Os advogados envolvidos ficaram muito chocados com a velocidade”, contou Kathy Bates – no filme, Jewell é defendido apenas pelo excêntrico Watson Bryant (Sam Rockwell). As coisas cresceram exponencialmente desde 1996, com o ciclo cada vez mais veloz, num sistema formado pelos canais de notícias 24 horas, a internet e as redes sociais. “Quanto tempo leva para um boato acabar com a carreira de um senador ou de outra pessoa?”, perguntou Jon Hamm. “E esse constante estado de ‘te peguei!’ acaba prejudicando o debate, porque todo o mundo fica aterrorizado de dizer algo que seja tirado do contexto, inclusive em situações como esta entrevista”, completou. Indagado se tem medo de ser cancelado, ele respondeu: “Quem não tem? Parece ser tão arbitrário hoje em dia!”.
Hamm também apontou para o perigo do uso da expressão fake news. “Tudo pode ser chamado de ‘fake’, mesmo quando não é. Então estamos nesse mundo invertido, em que ninguém acredita em nada, e cada um tem suas crenças de acordo com o lado em que está e não ouve o outro”, afirmou o ator. “Mas eu acho que essa história tem apelo para ambos os lados, porque é sobre uma pessoa que foi colocada erroneamente numa lista.”
Por conta desse erro, o verdadeiro culpado, Eric Rudolph, cometeu outros três atentados terroristas. “Eu não entendo a cabeça de alguém que faz isso. Qual o sentido?”, questionou Hamm. “O filme faz um belo trabalho em mostrar a celebração, a excelência e o esporte e, do outro lado, alguém tão ferrado da cabeça que coloca uma bomba lá.”
Depois da onda dos atentados dos anos 1990, que incluíram o primeiro do World Trade Center e o do Federal Building em Oklahoma, houve o 11 de Setembro. “Viver com medo é uma droga. É tão melhor viver sua vida em maravilhamento. Então esse talvez seja o grande aprendizado do filme: vamos ser mais como Richard Jewell, vamos melhorar”, disse o ator.
A esperança de Paul Walter Hauser, que roubou a cena num pequeno papel em Eu, Tonya e faz agora seu primeiro personagem principal, é que o filme tenha impacto. “Eu acredito que histórias podem corrigir erros, influenciar a cultura e mudar corações e mentes”, disse. Kathy Bates contou que repensou muito o propósito de sua carreira ao longo do tempo. “E não quero soar muito Pollyana, mas o que me faz continuar é ajudar a criar a empatia de que todos precisamos.” A atriz teve uma prova de que vale a pena quando se encontrou com Bobi Jewell – seu filho Richard morreu em 2007, aos 44 anos. “Ela é uma mulher cheia de opinião, mas ficou com os olhos marejados quando conversamos. A dor da injustiça ainda está muito viva mesmo depois desses anos todos. Foi bom vê-la andando no tapete vermelho na pré-estreia ao lado de Clint Eastwood.” Uma placa em homenagem a Richard Jewell vai ser inaugurada no local da explosão, o Centennial Park. É um passo adiante na recuperação da imagem de Jewell, ainda visto por muitos como o culpado.
Daí a importância de cineastas como Clint Eastwood. “Ele faz um cinema clássico, e não sei se esse tipo de longa vai estar sendo feito daqui 10 anos”, afirmou Sam Rockwell. Hamm emendou: “Especialmente num esquema de estúdio, com lançamento nos cinemas. Quase ninguém tem esse cacife ou a coragem, para ser mais preciso.” Mesmo com ressalvas, seus filmes são necessários.
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01 de janeiro de 2020 | 07h00
Não existem heróis menores para Clint Eastwood. Aliás, os “menores” é que são os verdadeiros heróis. Gente comum, banal, que não valeria uma linha na imprensa, mas que, em determinado momento de sua vida, pratica um ato de coragem e altruísmo que o tira do anonimato. Assim foi com Richard Jewell, típico loser americano.
Fracassado, meio bobo, acima do peso, homem feito morando com a mãe (Kathy Bates), Jewell (Paul Walter Hauser), trabalhando como segurança num parque, salva a vida de inúmeras pessoas num atentado a bomba durante a Olimpíada de Atlanta, em 1996. Mas não existe herói sem que haja quem tente destruí-lo. No caso de Jewell, são duas as forças que se voltam contra ele – e exatamente no momento de sua maior glória: o FBI e a imprensa sensacionalista.
Este é um dado interessante e cruel, tirado por Clint Eastwood da história verídica de Richard Jewell. Ele é um herói tão improvável que passa a despertar suspeita. No mundo da imagem – que é o nosso –, como aquele ser tão mal ajambrado poderia se elevar acima dos seus concidadãos e praticar um ato de heroísmo? É mais fácil supor que tenha sido ele mesmo a forjar o atentado para se transformar em personalidade fake e receber as benesses dessa condição, fama e dinheiro. De modo que a vida de Richard Jewell, que se transformara em paraíso logo em seguida ao caso, logo vira um inferno.
Temos aqui mais um capítulo da luta do homem contra o Estado, história tão cara ao liberal clássico anglo-saxão. Quer dizer, ao verdadeiro liberal, guardião das liberdades individuais, não este arremedo de liberalismo reacionário nos costumes que temos no Brasil. Clint ainda é um desses exemplares: o cavaleiro solitário, taciturno e seguro de si, em sua ética individualista e seca. Há, por certo, a celebração do patriotismo, mas também indignação na maneira como pinta os ataques desmesurados do FBI à dignidade de Jewell. Da maneira como tentam destruir o homem servindo-se de um arremedo de justiça.
Outra das grandes instituições na berlinda é a imprensa, o “quarto poder”. E que, a exemplo da força do Estado, se usado de maneira inescrupulosa, pode se tornar criminoso. É outro velho tema do cinema, em especial norte-americano. O clássico dos clássicos, Cidadão Kane, não deixa de ser um filme sobre jornalismo. Dois títulos de Billy Wilder enxergam a profissão pelo seu lado mais escuro – A Montanha dos Sete Abutres e A Primeira Página. Todos os Homens do Presidente o celebra.
Clint destaca o “lado escuro da Força” – e este é o ponto mais polêmico do filme, pois coloca em cena a gananciosa repórter Kathy Scruggs (Olivia Wilde). Em busca do “furo”, da notícia mais vendável, Kathy é apresentada como jornalista sem qualquer escrúpulo, pronta a destruir vidas em busca da história exclusiva, e trocar sexo por privilégio de informações. A versão de Clint é controversa e despertou enorme polêmica, em especial porque a verdadeira Kathy não está mais aqui para se defender – morreu em 2001.
De qualquer forma, foi ela a levantar a história de Richard Jewell e publicá-la no Atlanta-Georgia Constitution. A maneira como obteve as informações do FBI é objeto de debate. Assim como a forma como as manipulou para manter o assunto “quente” e vendável. Aos 89, Clint é um liberal à moda antiga, talvez um tanto machista. Mas o filme é maravilhosamente dirigido.
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01 de janeiro de 2020 | 07h00
Em entrevista ao lado do ator Paul Walter Hauser, Clint Eastwood fala sobre introversão, O Caso Richard Jewell e as críticas sobre a exatidão do filme, baseado em história real.
Como espera que este filme mude a percepção pública sobre Richard Jewell?
Hauser – Espero que além de entreter, porque nosso negócio é entreter e contar uma grande história, o filme ajude a limpar o nome dele. É uma volta triunfal para a família Jewell, embora sem Richard aqui com eles.
O que o mais o orgulha em sua obra?
Eastwood – Fiz uma peça de teatro no colégio e jurei que nunca mais voltaria a fazer isto. Mas depois, quando você começa a representar já adulto, percebe que este trabalho não é necessariamente para pessoas extrovertidas. Os introvertidos são grandes atores porque têm muita coisa guardada internamente. É apenas uma questão de aprender como deixar tudo isso sair. O trabalho de ator também é curioso porque você não sabe o que vai acontecer em seguida. É uma vida divertida, mas muitas coisas simplesmente acontecem. Chegam histórias e você procura contá-las da melhor maneira possível – e não é só uma forma de arte intelectual, é uma forma de arte emocional.
O editor do Atlanta Journal-Constitution (AJC) questionou a exatidão da história, disse que não é correto que Kathy Scruggs teve relação sexual em troca de pista e rechaçou a ideia de que o jornal teria usado fontes questionáveis. O senhor tem uma resposta?
Eastwood – O jornal é provavelmente o único grupo com algum tipo de complexo nessa história porque foi o primeiro a noticiar sobre um crime cometido por Richard Jewell. Assim, talvez eles estejam buscando maneiras de racionalizar sua atividade. Não tenho certeza. Nunca conversei com ninguém de lá.
Hauser – Mas também tem o problema dos filmes biográficos, que estão historicamente sob escrutínio, seja no caso da família Dupont em Foxcatcher ou na história que chocou o mundo – da Igreja Católica em Spotlight. É óbvio o que está ocorrendo com o AJC, e entendemos sua inquietação, mas estamos contando nossa história e achamos que fizemos um bom trabalho. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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