Novo filme de Apichatpong reespiritualiza o mundo

'Hotel Mekong', longa-metragem de apenas 57 minutos, retoma ideias presentes no premiado 'Tio Boonmee'

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
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É mais fácil soletrar o nome de Apichatpong Weerasethakul que encontrar alguma unanimidade acerca do seu cinema. Queridinho da crítica, digamos, mais avançada, o tailandês desperta resistências entre pensadores respeitáveis. O crítico Michel Ciment, por exemplo, diretor da tradicional (e ótima) revista Positif, o considera mais um pintor que um cineasta de verdade. Perguntado uma vez sobre 'Tio Boonmee – Que Podia Lembrar Suas Vidas Passadas' , filme com que Apichatpong venceu a Palma de Ouro em Cannes, Ciment limitou-se a dizer: "Ficaria melhor num museu que numa tela de cinema".

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Na frase, Ciment relembra que Apichatpong é também artista plástico. E, avancemos, isso também significa que dificilmente se encontra em seus filmes alguma imagem banal. Basta ver seu mais novo trabalho, 'Hotel Mekong', um longa-metragem sintético (57 minutos apenas), que retoma ideias presentes em 'Tio Boonmee'. Estamos à beira do Mekong, numa varanda que dá para o rio e dois personagens conversam – o próprio diretor e um violonista. A trilha sonora, serena e melódica, acompanhará o espectador ao longo de todo o percurso.

Depois, vemos alguns hóspedes conversando, enquanto observam as águas do rio, fronteira entre a Tailândia e o Laos. Uma mãe e uma filha também falam, mas num dos quartos do hotel. Os temas de conversação parecem banais, até que tomam um rumo inesperado. A natureza em torno parece plácida, mas o que dizer quando as conversas recaem sobre a reencarnação e um rapaz diz à namorada que a ama, mas reencarnará como cavalo e ela terá de esperar um tempo indefinido até que ele volte de novo como homem? E o que dizer quando uma plácida e delicada mulher revela-se uma espécie de vampira, sedenta de carne e sangue. As surpresas vêm tanto das palavras quanto de algumas imagens. A natureza permanece a mesma, bela e indiferente.

Talvez esse seja um motivo (no sentido musical do termo) muito presente no cinema de Apichatpong – a indiferença da natureza, que contrasta com os dramas humanos que a têm como pano de fundo. Por isso tudo parece tão calmo enquanto coisas terríveis acontecem – tanto em seu filme de estreia, 'Mal dos Trópicos', quanto em 'Tio Boonmee' e agora em 'Hotel Mekong'. É como se tivéssemos diante dos olhos dois (ou mais) planos distintos de realidade. E, aos poucos fôssemos sendo conduzidos de um plano mais imediato para outro, mais abstrato, mais deslocado e mágico.

Daí a sensação hipnótica que seus trabalhos produzem. Não por que sejam monótonos. Pelo contrário. Na mesmice do cinema atual produzem efeito inverso, chocando pelo inusitado. Esse efeito nos recoloca numa dimensão que tem mais a ver com o sonho do que com a percepção consciente de um mundo desencantado, que assim, aos poucos, se reespiritualiza.

Desse modo não é de surpreender que, depois de toda uma série de fatos nada usuais apresentados pela "história", algumas cenas absolutamente banais sirvam como uma espécie de fecho de um koan – o enigma iluminador apresentado pelo zen budismo. O que pode haver de mais ordinário, no sentido de comum, que algumas pessoas praticando jet ski nas águas de um rio de cultura milenar? Talvez nada; talvez tudo. Mas, percurso feito, já não vemos o banal da mesma maneira. Ele passou a cercar-se de outros significados e sensações. Numa palavra, o cinema de Apichatpong não fala sobre o zen. Ele busca ser um cinema zen.

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