Nicole Kidman volta para fazer platéia suar frio

Atriz estrela Os Outros, de Alejando Amenábar, que estréia nesta sexta-feira

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Por Agencia Estado
Atualização:

A atriz pode ser uma gracinha mas o filme nada tem de engraçado. Pelo contrário. Os Outros, estrelado por Nicole Kidman, foi feito para assustar. E se existe algum prazer em ir ao cinema para sentir medo (e é claro que existe, senão o que seria de Hitchcock?), então o filme é esse. Os Outros, dirigido por Alejandro Amenábar, cineasta que nasceu no Chile, filmou na Espanha e agora está radicado nos EUA, aposta suas fichas na atmosfera gótica e numa trama sutilmente claustrofóbica para envolver os espectadores e fazê-los suar frio. A história se passa na ilha de Jersey, único território britânico ocupado pelos nazistas durante a 2ª. Guerra Mundial. Estamos em 1945 e a guerra já acabou, mas não seus efeitos. Nicole Kidman é Grace e ela vive com os dois filhos numa mansão soturna em Jersey. Espera, em vão, pela volta do marido, que estava lutando no front e do qual ela não tem notícias. Há um adicional de insalubridade no dia-a-dia da mansão. As crianças, Anne e Nicholas, sofrem de uma estranha doença - são alérgicas à luz do sol. Assim, a casa deve permanecer às escuras, protegida por cortinas pesadas. Nenhuma porta pode ser aberta sem que a anterior tenha sido fechada. Grace terá de ensinar todo esse ritual mórbido para os três serviçais que se apresentam para preencher o lugar dos outros, que fugiram durante a noite. Os três alegam que têm prática no serviço, pois já trabalharam anteriormente naquela casa, afirmação que não fica muito clara. Portanto, há um véu de dúvidas que cai sobre os novos empregados. O espectador suspeita deles logo de início e não apenas pelas caras patibulares, mas porque a origem deles parece pouco explicável. Trabalharam naquela casa, mas quando, e sob que circunstâncias? São eles a governanta Bertha Mills (Fionnula Flanagan), um jardineiro e uma jovem criada que não abre o bico e nem poderia, pois é muda. Esse bom elenco de apoio também é responsável pela eficácia do filme. Mas, claro, tudo acaba convergindo para Nicole, que segura bem a tensão do papel. Grace, sua personagem, é uma católica praticante e rígida. Trata as crianças dessa maneira. Mas seus filhos, talvez afetados pelo rigor de uma doença que não as deixa ver a luz do sol, começam a imaginar coisas. Dizem que a casa está sendo invadida por estranhos. A menina afirma que conversa com um menino desconhecido e há também uma velha senhora que entra em cena nas horas mais inesperadas. A fortaleza inexpugnável que Grace montou para ela e os filhos parece ameaçada. Mas essas conversas com estranhos expressam a verdade ou as crianças estão mentindo? O espectador não sabe. Claramente, Amenábar faz com que o público se identifique com Grace, quer dizer, faz com que assuma o ponto de vista dela. Durante algum tempo, o espectador saberá apenas o que ela souber. Grace é somente uma mãe extremosa tentando cuidar dos seus filhos, que não sabe se estão ameaçados ou inventando coisas. Mas aqui entra outra esperteza de Amenábar. Ele sabe que a ignorância é a melhor fonte do medo. Teme-se aquilo que não se compreende. Aquilo que não se vê. E, portanto, uma boa estratégia de suspense é semear dúvidas no caminho do espectador. Se ele não souber nada, também não entenderá o que se passa. Se souber tudo, a história fica sem graça. Se souber algumas coisas e ignorar outras poderá exercer sua capacidade de sentir medo. O espectador deve saber alguma coisa e temer outras tantas. Num primeiro, momento ele deve temer por Grace. Em outro, talvez seja Grace a própria fonte de temor. Essa estratégia - jogar a suspeita sobre um dos personagens, talvez sobre o narrador - não é exclusividade do cinema. Pelo contrário. Passou antes pela literatura e é a pedra de toque de um clássico do gênero, A Volta do Parafuso, de Henry James. Aliás, essa novela, filmada por Jack Clayton em 1961, é uma espécie de modelo do gênero. Deborah Kerr faz a governanta contratada para tomar conta de dois pimpolhos que talvez escondam alguma malignidade atrás do arzinho inocente que ostentam. Tanto na novela quanto no filme, a ação é filtrada pelo ponto de vista da governanta. E, aos poucos, leitor e espectador vão perceber que esse narrador não é lá dos mais confiáveis. Enfim, as crianças são malignas ou é a mulher que está inventando tudo? Esta desconfiança é a base conceitual da estratégia de A Volta do Parafuso, de Os Inocentes, e, por extensão, de Os Outros, filhote declarado dos dois primeiros. Filhote em termos de clima, ambientação e performance do elenco. As tramas de um e de outro têm alguns paralelos, mas divergem no desenvolvimento e no final. Fica claro, porém, que Henry James, sua adaptação por Clayton e, óbvio, Hitchcock, fazem parte das referências maiores de Amenábar. Devem ser seus autores de cabeceira ou não estariam tão integrados ao resultado do seu trabalho. Num certo sentido, é salutar que ele tenha ido buscar esse diálogo com autores mais antigos, tanto na literatura quanto no cinema. Foi o que lhe tornou possível escapar da ditadura dos efeitos especiais, que criam facilidades para os cineastas, ao mesmo tempo que cobram seu preço e tornam os filmes insípidos e sem imaginação. Amenábar trabalhou com despojamento em face da parafernália dos estúdios. Conseguiu criar um clima tenso apenas com uma boa história, senso de ritmo e de direção, e, claro, um ótimo elenco. São os materiais de construção básicos do bom cinema. Os Outros pode não ser uma obra-prima, mas atinge perfeitamente seus objetivos. E prova que Nicole Kidman, além de ser mesmo uma gracinha, é também boa atriz. O que já se sabia desde De Olhos bem Fechados, de Stanley Kubrick.

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