'Natimorto' leva universo de Lourenço Mutarelli às telas

Cigarro é quase um personagem no filme de estreia em longa do premiado curtametragista Paulo Machline

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Por Redação
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O cigarro é quase um personagem em Natimorto - estreia em longa do premiado curtametragista Paulo Machline, que em 2001 foi indicado ao Oscar por Uma História do Futebol. Neste novo filme, que tem praticamente apenas dois atores em cena, fuma-se muito, mas muito mesmo. A fumaça, uma bruma que esconde as pessoas e mascara seus sentimentos, é onipresente. O roteiro, assinado por André Pinho, baseia-se no romance O Natimorto, Um Musical Silencioso, de Lourenço Mutarelli, cujo O Cheiro do Ralo rendeu em 2006 um filme igualmente estranho e criativo. Pela estreia de Machline percebe-se que ele sabe muito bem o que quer - especialmente de sua câmera e seus atores. Em cena, durante quase todo o tempo, apenas Simone Spoladore e o próprio Mutarelli, em seu primeiro papel como protagonista. Ela é uma cantora lírica, no livro conhecida apenas como A Voz, e ele, seu Agente. A garota vem para São Paulo, onde será apresentada a um poderoso maestro que irá deslanchar sua carreira. Enquanto esperam, os dois se fecham num quarto de hotel, depois de um jantar cheio de desentendimentos com a mulher do Agente, vivida por Betty Gofman. Para o Agente, o cigarro é uma espécie de catalisador de sentimentos, emoções ou qualquer outra forma de expressão. As assustadoras fotos do verso da embalagem não servem de alerta antifumo e sim como cartas de tarô para prever o futuro. É engenhosa a forma como Mutarelli, enquanto autor, criou um paralelo bastante crível entre as cartas reais do tarô e as figuras do verso das embalagens. Mais bem sacado ainda é como Machline usa esse paralelo no filme, ditando destinos de personagens e trazendo à vida símbolos e figuras. Nas atuações, há um embate curioso de se ver entre Simone, atriz experiente e talentosa, que participou de filmes como Lavoura Arcaica e Desmundo, e Mutarelli, escritor que parece se descobrir como ator aos poucos, mas sempre com uma presença marcante. Machline, por sua vez, não exibe aqueles deslumbramentos de alguns estreantes que parecem querer mostrar todo seu arsenal técnico e narrativo no primeiro longa. Ele é seguro na condução dos atores, na movimentação de câmera e desencadeamento da narrativa. Boa parte de Natimorto acontece num claustrofóbico quarto de hotel, que parece exalar para fora da tela o cheiro dos cigarros fumados ali. Nem sempre histórias tão bizarras como do livro O Natimorto, Um Musical Silencioso encontram uma boa tradução para a tela. No caso deste filme, Machline conseguiu o equilíbrio entre os elementos estranhos e a delicadeza - especialmente quando A Voz canta e nós não a ouvimos. Pelos seus gestos, percebemos que é um canto doce. É uma voz tão sublime que apenas os ouvidos mais apurados são capazes de ouvir. Natimorto é, em sua essência, uma história de amor. Bastante estranha, como seus protagonistas. Então, no fundo, fazendo um paralelo com o ditado "quem ama o feio, bonito lhe parece", o estranhamento fica por conta apenas de quem está do lado de fora. (Por Alysson Oliveira, do Cineweb)

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