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'Não sinto nenhuma conexão com os personagens que interpreto', diz Daniel Craig

Ator mais longevo da franquia 007 se despede após 15 anos: 'Tenho outros projetos que vão me recompensar, mas não há nada como um filme de James Bond'

Por Dave Itzkoff
Atualização:

Mais de um ano e meio atrás, Daniel Craig e eu nos encontramos no Museum of Modern Art para conversarmos sobre seu último filme como James Bond, Sem Tempo para Morrer, e dar adeus a esse superespião suave que ele vem interpretando desde 2006.

Quando sentamos em nossa mesa em uma sala privada no restaurante do museu, Craig me ofereceu um spray desinfetante que estava carregando. “Isso aqui é como ouro em pó”, ele disse de repente. “É uma coisa louca; as pessoas estão vendendo isso por US $25 cada.”

Daniel Craig, que interpretou o agente James Bond por cerca de 15 anos, em foto de março de 2020 Foto: Devin Oktar Yalkin/The New York Times

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Essa acabou sendo a parte mais significativa da nossa entrevista. Passamos a hora seguinte em uma conversa educada sobre o making-of de Sem Tempo para Morrer (que, na época, estava agendado para estrear em um mês) e como ele estava feliz tanto com o trabalho que havia feito como por terminar suas obrigações.

Nós nos despedimos e, dois dias depois, a MGM e os produtores da franquia Bond anunciaram que iriam adiar o lançamento de Sem Tempo para Morrer até novembro, citando sua “cuidadosa consideração e avaliação completa do mercado global de cinemas.” (“Entendemos que essa é uma decisão puramente econômica e não baseada no medo crescente do coronavírus,” a publicação comercial Deadline escreveu de forma nada convincente na época.)

Embora não tivesse nenhum filme para promover, Craig foi o anfitrião do episódio do Saturday Night Life daquele fim de semana, que apresentou um sketch alegre e bobo sobre como o coronavírus poderia afetar a produção de novelas, e a apresentação que Craig fez do convidado musical, the Weeknd, foi de um entusiasmo inesperado. No dia seguinte, ele, sua esposa, Rachel Weisz e sua família deixaram Nova York e o país mergulhou de cabeça na pandemia.

Qualquer sentido de frivolidade, livre de consequências, foi praticamente abolido nos meses seguintes. Ainda que a trajetória da pandemia continue incerta e a bilheteria oscile a cada semana, a MGM - que adiou o filme mais duas vezes - agora se comprometeu a lançar Sem Tempo para Morrer, no dia 8 de outubro.

Foi uma despedida estranha e arrastada para Craig, 53, que desde o momento em que foi escolhido para suceder Pierce Brosnan como o 007, nunca foi um encaixe óbvio e elegante para o personagem. Ele parecia muito rígido; seu currículo não era tão grande, seu cabelo era muito loiro.

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Craig me disse nessa primeira entrevista que achou que havia sido convidado para o teste como bucha de canhão, para que fosse mais fácil escolher outra pessoa para o papel.

“Eu só estava no meio da mistura - alguém para ser dispensado,” ele disse, acrescentando que, na melhor das hipóteses, achou que conseguiria o papel de um vilão dispensável, “Aqui está, pegue esse vilão.”

Em vez disso, Craig aproveitou sua estreia, Cassino Royale, emendou na rápida sequência de 2008, Quantum of Solace e nas duas sequências de duração mais épica Operação Skyfall (2012) e Contra Spectre (2015). Seus filmes como Bond, que arrecadaram mais de US$ 3 bilhões pelo mundo, ficaram cada vez mais ambiciosos em escala e vertiginosos no tempo de duração.

Apesar das indicações de que havia azedado com a franquia - quando a Time Out perguntou se ele poderia se imaginar fazendo uma nova aparição, ele disse, “Eu prefiro quebrar esse copo e cortar meu pulso” - e dos ferimentos intermitentes que sofreu, Craig disse que queria viver mais uma vez seu taciturno e impassível Bond para completar a história que Cassino Royale havia começado.

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“Há uma consistência que eu queria colocar nele”, ele me disse na época, acrescentando com uma risada, “Talvez eu seja lembrado como o Bond rabugento. Não sei. É apenas o meu Bond, e tenho que encará-lo: Tem sido o meu Bond. Mas estou bem satisfeito com isso.”

Quando conversamos de novo por telefone em setembro, Craig agiu de forma reservada como de costume, mas estava um pouco mais relaxado. Saber que Sem Tempo para Morrer estava chegando agora lhe deu a liberdade para refletir sobre o que a experiência Bond significou para ele - até certo ponto. Quando perguntado sobre os desenvolvimentos que poderiam afetar o futuro da franquia Bond - como, por exemplo, os planos da Amazon para comprar a MGM - ele falou muito.

E, claro, a estrela reservada tem mais um segredo na manga: Foi anunciado quarta-feira que Craig vai estrelar uma nova produção da Broadway de Macbeth, interpretando o personagem com sede de poder do título ao lado de Ruth Negga como Lady MacBeth. (Essa produção, dirigida por Sam Gold, deve ter uma pré-estreia no Lyceum Theater no dia 29 de março e a estreia no dia 28 de abril.)

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Como Craig diria em mais de uma ocasião durante nossas conversas, ele é apenas um ator e não deve ser confundido com seu em breve ex-alter ego.

“Tudo que eu queria era viver disso", ele disse sobre atuar. “Eu não queria ter que servir mesas, o que fiz desde os 16 anos. Eu pensei que se conseguisse fazer isso e pagar o aluguel, já seria um sucesso.”

“Acredite em mim, sou um simples mortal,” ele disse.

Craig falou mais sobre a longa espera por Sem Tempo para Morrer e compartilhou - por enquanto - suas reflexões finais sobre James Bond. Esses são trechos editados de duas outras conversas.

Como esse último um ano e meio foi para você? Como estão as coisas, o que isso significa para você?

Estão tão boas quanto podem estar. Sou muito sortudo por ter uma família maravilhosa e também por ter um lugar fora da cidade para onde pudemos ir para sair um pouco dessa loucura. Saímos da cidade no dia 8 de março. Na noite anterior eu fiz o SNL, que foi realmente surreal. Foi um ano duro para todos, e algumas coisas não têm sido tão agradáveis, mas vamos levando.

Cena do filme '007 - Sem Tempo Para Morrer', com Daniel Craig no papel de James Bond. Foto: Foto: Nicola Dove

É humilhante interpretar esses personagens que se definem por serem capazes e cheios de recursos e ter uma experiência na vida real que nos lembra de que todos estamos à mercê de forças maiores?

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Bem, não sinto dessa forma. Eu me sinto como um ser humano normal a maior parte do tempo. Não sinto nenhuma conexão com os personagens que interpreto. Nenhuma. Eles são apenas aquilo. Tantas coisas foram colocadas em perspectiva. É difícil não olhar para o mundo de uma forma diferente. Tenho a certeza de que é assim para todos.

Há um vídeo circulando de um discurso que você fez para seus colegas e equipe no final da gravação de Sem Tempo para Morrer. Você chorou no final, e foi muito reconfortante para mim vê-lo demonstrando essa emoção - mostrando ser vulnerável daquele jeito.

Eu não me mostro para o mundo tanto quanto as pessoas talvez gostassem, mas é uma escolha minha. Isso provavelmente me trouxe problemas e fez com que as pessoas ficassem imaginando quem eu era. Mas eu sou um ser humano incrivelmente emocional. Eu sou um ator. Quero dizer, é como ganho a vida. E o vídeo de que está falando é o final de 15 anos da minha vida, e coloquei tudo que podia nisso. Eu seria algum tipo de sociopata se não ficasse um pouco engasgado com isso. Felizmente, não sou um sociopata.

Se as coisas tivessem acontecido como o que foi planejado um ano e meio atrás, você teria aproveitado esse final de uma forma mais brilhante. Isso parece ter sido silenciado de alguma forma?

Coloque a covid no final de cada frase. Estou muito otimista com tudo isso. Estou apenas feliz por termos conseguido chegar a esse estágio porque só Deus sabe, um ano e meio atrás, nada disso fazia sentido ou parecia remotamente possível. Estou apenas incrivelmente feliz por termos chegado a um ponto em que podemos ter público para assistir. Estou tão desesperado para que as pessoas simplesmente assistam e espero que gostem.

Quantas outras empreitadas levam 15 anos da vida de uma pessoa? Geralmente você consegue um doutorado ou uma cátedra com seu nome no final.

É verdade. [Risos.] Não tenho nenhum dos dois, de longe. Mas é muito gentil da sua parte colocar nesses termos.

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De que sentirá falta sobre Bond?

Vou sentir falta do esforço massivo de equipe que ele exige. Faz quase cinco anos que começamos esse projeto, com toda frustração e ansiedade que ele pode trazer. Às vezes parece que não vai acontecer, mas é um processo criativo incrível, e vou sentir falta disso. Tenho outros projetos que vão me recompensar, mas não há nada como um filme de Bond.

Algo específico sobre o personagem?

Eu o fiz. Dei tudo que pude. Ele continua presente e sempre estará presente para mim. Quero dizer, quem sabe? Não tenho uma resposta clara para isso.

Você é pai. Acha que Bond significará algo para seus filhos e a geração deles?

Se você entende tanto assim de crianças deveria ter uma cátedra. Não entendo tão bem assim de crianças. Elas são um enigma para mim, e se realmente tirarem algo desses filmes no futuro, é a jornada delas, não a minha.

Você tem algum envolvimento na busca pelo seu sucessor?

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Nenhum.

Daniel Craig, que interpretou o agente James Bond por cerca de 15 anos, em foto de março de 2020 Foto: Devin Oktar Yalkin/The New York Times

Prefere assim ou as coisas são simplesmente assim?

Não tem nada a ver comigo. Quem quer que venha, boa sorte para eles. Espero que se divirtam tanto quanto eu e continuem fazendo filmes interessantes e relevantes.

Na primavera passada, a Amazon disse que iria comprar a MGM, que faz os filmes de Bond, em parte para poder ter uma participação no futuro da franquia. Isso...

Quer saber, boa sorte para eles. Estou muito feliz com as pessoas da MGM. Trabalho com eles há muito tempo agora. Não estou tentando ser político. Mas não tem nada a ver comigo.

Enquanto estava se despedindo de Bond, teve sucesso com o papel de Benoit Blanc, e Entre Facas e Segredos está se tornando uma franquia. Você se sente como Michael Corleone em O Poderoso Chefão: Parte III - “Bem quando achei que estava fora, me puxaram para dentro”?

Olha, escreva isso se quiser. [Risadas.] Quero dizer, quão sortudo eu sou? Tive a chance de trabalhar com Rian Johnson em algo incrivelmente gratificante e divertido.

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Havia uma indefinição lúdica e um conforto que Benoit Blanc tinha sobre si mesmo, quase em um contraste deliberado com a rigidez de Bond. Você achou que esse papel te deu mais espaço para atuar?

É só a natureza do papel, na verdade. Bond é o que é, e Benoit é muito diferente. Pra ser sincero, como um ator, esse é meu trabalho: interpretar papéis diferentes. Peguei esse roteiro e pensei, sério? É incrível, assim como foi com Cassino Royale.

Você está voltando para a Broadway no ano que vem para estrelar Macbeth. Por que se interessou por essa peça específica?

É a única outra peça de Shakespeare que li. [Risadas.] Não, sempre foi uma das minhas favoritas. É muito difícil. Tem um ritmo rápido, não é muito longa. Há a oportunidade de fazer algo. A Broadway tem sofrido muito, como qualquer setor, e fazer algo espetacular, mágico e estranho, tentar fazer isso na Broadway, ajudar e tentar impulsioná-la o máximo possível - eu sei que podemos fazer uma produção maravilhosa. Vai ter muita coisa acontecendo na Broadway no ano que vem e eu queria participar disso.

Como alguém se prepara para interpretar Macbeth?

Você aprende as falas. Tivemos muitas ideias e todas elas estão em discussão agora. Faremos um workshop da peça por duas semanas em novembro e vamos começar a ensaiar no ano que vem. Espero que nessas duas semanas a gente acerte algumas ideias. E então você começa a partir daí. Graças a Deus que conseguimos Sam Gold e Ruth.

Há uma nova versão cinematográfica de Macbeth, com Denzel Washington, que será lançada no final deste ano. Sente alguma competição com esse projeto?

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Deus me livre de estar competindo com Denzel Washington. Jesus! Não acho que valho a pena. Isso não está em questão. Vão ser muito diferentes, claramente, mas não me preocupo com esse tipo de coisa. Quanto mais, melhor.

Você já foi Iago no Othello de Sam Gold. Você o fez reflexivo...

Como você sabe o que vou fazer? Estarei longe de reflexivo.

Daniel Craig, que interpretou o agente James Bond por cerca de 15 anos, em foto de março de 2020 Foto: Devin Oktar Yalkin/The New York Times

Vai fazer um Macbeth jovial?

Na verdade, não sei. Não tomo esse tipo de decisão tão cedo. Não fiz um Iago reflexivo. Foi exatamente o contrário. Os dois personagens são extremamente complexos e inteligentes. Macbeth é um desses personagens que, a princípio, dizem que ele é capaz de rasgar uma pessoa no meio. Mas ele está mais próximo de Hamlet do que qualquer coisa porque ele é muito introspectivo. Estou ansioso para cravar meus dentes nisso.

Talvez você queira interpretar Puck em Sonho de uma noite de verão depois, só para mudar o clima?

Sei o que quer dizer, mas não penso neles dessa forma. Essas comédias também são difíceis, são complicadas de acertar e fazer bem da mesma forma - não podem ser só engraçadas, mas reflexivas e profundas.

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E Falstaff?

[Suspira.] Me arrume um terno grande. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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