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Na tela, sete histórias sobre a infância perdida

Uma delas, João e Bilu vem assinada pela cineasta brasileira Kátia Lund, co-diretora de Notícias de uma Guerra Particular, com João Moreira Salles, e diretora de elenco de Cidade de Deus

Por Agencia Estado
Atualização:

"Foi um grande aprendizado. De todos os episódios, a história brasileira foi a que mais me fez aprender sobre a forma de lidar com as adversidades. As crianças brasileiras tinham o sorriso mais lindo de todos. Tinham suas dificuldades, mas encaravam isso com humor, alegria. Isso é único no mundo. Eu, que sou italiana, sei que nós somos muito mais sérios, céticos. Não há lugar como o Brasil." A declaração é de Chiara Tilesi, produtora italiana que criou com Stefano Veneruso e a atriz Maria Grazia Cucinotta o projeto Todas as Crianças Invisíveis, que conta a história dessa infância que muitos fingem não ver em sete países do mundo. A ouvidos desavisados, a afirmação de Chiara pode parecer mero deslumbramento de gringo, mas sua análise vai muito além. Os problemas das crianças citadas não são aqueles que muita gente imagina, entre a escola, a lição de casa e as férias. Tomando emprestadas as palavras do poeta Ulisses Tavares, as crianças invisíveis existem, mas, para muitos, parecem imaginação. E as tais crianças brasileiras que muito ensinaram a Chiara são Bilu e João, dois catadores de papel nas áridas ruas de São Paulo que ganham a tela sob a direção competente de Kátia Lund. (Segundo o crítico do Estado Luiz Carlos Merten, "a surpresa é constatar que a estreante, em experiências-solo, Kátia Lund bateu pesos pesados como Spike Lee e Ridley Scott, que assinam algumas das outras histórias). Mas se ser espirituoso é exclusividade do brasileiro, a miséria humana é democrática e violenta a infância de crianças do Brasil, Itália, Reino Unido, Sérvia, África, Estados Unidos e China. Foi pensando nisso que Chiara, que estudou cinema, mas até ter a idéia nunca havia trabalhado profissionalmente com essa área, tanto fez que convenceu a atriz Cucinotta e o diretor e produtor Veneruso a abraçarem o projeto e, juntos, provaram para o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) que o projeto era digno de nota. "Sempre tive o sonho de tornar realidade um projeto de filme como este, que despertasse a consciência das pessoas para a responsabilidade social que temos em relação a crianças de todo o mundo, que vivem em situações tão caóticas", conta Chiara, por telefone de Los Angeles, onde trabalha em seu novo projeto. Jordan e Ridley Scott, Spike Lee, John Woo, Emir Kusturica, Kátia Lund, Mehdi Charef e Veneruso Passada esta primeira fase, Chiara começou a epopéia de convencer diretores pelo mundo de que valia a pena aderir. E esta filha de um construtor de hotéis que tem casa em Búzios conseguiu o apoio de ninguém menos que Jordan e Ridley Scott, Spike Lee, John Woo, Emir Kusturica, Kátia Lund, Mehdi Charef e o próprio Veneruso. Cada um deles, então, escreveu um roteiro. São sete histórias que trazem à tona a infância perdida à custa de maus-tratos, violência, miséria, guerras, exploração, trabalho escravo. E Chiara fez questão de acompanhar os sets de filmagens em todos os países."Foi um trabalho enlouquecedor, que levou quatro anos para terminar. Às vezes, havia filmagens no Brasil, na África e nos Estados Unidos ao mesmo tempo. Mas era importante que eu estivesse perto. Aprendendo com os diretores", relembra. Chiara fica particularmente feliz com seu poder de persuasão. "Claro que eu ganhei o apoio do Unicef, da RAI Cinema do Fundo Mundial de Alimento, o que ajudou muito nas negociações. Mas é grande a força de um projeto como este, que não faz discurso, não é demagógico. Só mostra pelo viés da criança problemas que afetam a todos." Finalizado o longa, Chiara e equipe partiram para a maratona de exibições para personalidades e órgãos de apoio à criança em vários países. No Brasil, o filme foi exibido em janeiro para Danny Glover, ator e embaixador do Unicef, e para membros da instituição. "Filmes como este devem nos mobilizar para algum tipo de ação. Estou muito feliz com o resultado", disse na época o ator enquanto enxugava discretamente as lágrimas ao fim da sessão. "Se pessoas como ele entenderam, é porque meu projeto não foi em vão. Torço para que muitas crianças também assistam. Tenho certeza de que vão entender o drama de cada uma das retratadas na tela", conta ela, que até hoje investe dinheiro próprio na educação dos jovens atores que atuaram em cada um dos episódios do filme. O trabalho de cada um dos diretores Kátia Lund: A cineasta brasileira escreve e dirige a história de João e Bilu, que catam papel e latinhas nas ruas de São Paulo. Sofrem o diabo, mas não perdem o humor nem a alegria. O trabalho da diretora com os atores mirins Francisco Anawake e Vera Fernandez mostra que Kátia é fera. Se o filme foi o vestibular dela para a carreira-solo, Kátia foi aprovada. E bem. Emir Kusturica: A cultura cigana que se constitui na fonte de vitalidade do cinema do autor volta na história de Marjan, menino que é forçado a roubar pelo pai. As condições sociais entre Brasil e Sérvia-Montenegro são distintas. Herança de guerra, família disfuncional, Kusturica filma um quadro específico, mas há, no garoto, um pouco da euforia das crianças invisíveis brasileiras de Kátia Lund, cuja descontração nada, nem a mais cruel adversidade, consegue destruir. Stribor Kusturica, que co-assina o roteiro, é filho do diretor. Spike Lee: Há algo da Mouchette de Robert Bresson na garota soropositiva de Jesus Children of America. Hannah Hodson passa a idéia de um bichinho acuado por uma sociedade discriminadora e que, no fundo, a acusa por crimes que não cometeu. Lee é didático. Passa um sentimento de indignação, bem longe do cinismo de O Plano Perfeito. Stefano Veneruso: A história de Ciro, o menino que é protagonista do episódio italiano, não tem a força dos de Kátia Lund, Emir Kusturica e Spike Lee, mas possui dois fortes atrativos. A fotografia é assinada pelo grande Vittorio Storaro, dos filmes de Bernardo Bertolucci. E conta com a beleza de Maria Grazia Cucinota, aquela deusa que Massimo Troisi pedia ajuda a Philippe Noiret para conquistar no cultuado O Carteiro e o Poeta, de Michael Radford. O tema agora é duro, o diretor vacila, mas com Maria Grazia permanece a imagem da poesia. Jordan e Ridley Scott: O prestigiado cineasta inglês de Gladiador chamou sua filha Jordan para desenvolver com ele a história de Jonathan. O episódio possui plasticidade, carrega no esoterismo e privilegia o adulto disfuncional como personagem. Mehdi Charef: O episódio africano de Crianças Invisíveis tem direção do argelino Charef, também roteirista, que trata da guerra, mostrando meninos que pegam em armas como se fossem adultos. É bem-intencionado, mas um dos mais fracos. John Woo: Mestre da ação, conhecido pela coreografia da violência de seus filmes de grande espetáculo, como Missão Impossível, o cineasta de Hong Kong assina o episódio chinês, Song Song e Little Mao, sobre duas órfãs. Woo exagera nos sentimentos, mas quem disse que não atinge seu objetivo? É melhor prevenir-se e levar um estoque de lenços de papel para o cinema.

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