Na tela, a hora e a vez do vinil

A notícia do fechamento de uma loja de LPs em Pinheiros rendeu à cineasta Anna Muylaert a idéia do seu primeiro longa. O filme foi o grande vitorioso em Gramado

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Por Agencia Estado
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Não, o Edgar só poderia estar maluco. E o que seria daquele sorriso de Tim Maia, tão vistoso na vitrine? Gal Costa, provocante em fundo azul, iria para onde? Que felizardo levaria as cabeças decapitadas dos Secos e Molhados? Sem falar no mar de outros LPs de rock-and-roll dos anos 50 e 60 que faziam aquelas prateleiras serem tão especiais. Foi sua irmã entrar em casa com a notícia de que a Edgar Discos iria fechar que Anna Muylaert começou a sentir o baque. O vinil estava mesmo indo embora. Anna ficou triste e inspirada. Seu primeiro longa metragem começou a ser pensado naquele momento. Se passaria em uma loja de discos decadente de Pinheiros, bairro onde foi criada e onde vê casinhas indefesas serem engolidas por prédios gigantes a cada ano. Foram os R$ 1,5 milhão mais bem investidos de sua vida. Durval Discos, o filme, voltou do Festival de Gramado com sete prêmios kikitos. Estréia nos cinemas dia 11 de outubro e tem Etty Fraser, Ary França, Marisa Orth, Letícia Sabatella e participações de Théo Werneck, Rita Lee e André Abujamra. A Edgar Discos, um símbolo da resistência das bolachonas pretas à chegada dos disquinhos a laser, serviu-lhe como a faísca inicial para a criação da história fictícia. O vinil não estava indo embora quando o senhor Edgar resolveu baixar as portas para começar vida nova em Santos, já com mais de 60 anos. A Eric Discos, outra loja de Pinheiros que também serviu de inspiração para a cineasta e seus produtores, está firme e forte no número 1813 da Rua Artur de Azevedo. Foi lá que Anna gravou um demo-filme de Durval e onde pegou detalhes para criar a loja em que as filmagens foram feitas. O Eric Discos é Eric Crauford, um inglês de Londres que veio para o Brasil em definitivo há 30 anos com uma coleção de 28 mil álbuns na bagagem. "Vim com minha família de avião e mandei os discos de navio", recorda. Sua loja contabiliza hoje 100 mil títulos em LPs e, contra sua vontade, 4 mil CDs. "Sou contra o CD, mas precisamos ter um pouco em estoque." Exportações são feitas para o Japão e países da Europa. Nos anos 70, Raul Seixas era cliente cativo. Entrava sempre sedento atrás de alguma peça rara de Jerry Lee Lewis, Chuck Berry ou Elvis Presley. Eric é fornecedor para artistas tão díspares quanto Moacir Franco e Titãs, clientela paradoxal que só comprova a variedade de estilos que dorme nas estantes. Uma preciosidade de Elis Regina para fazer colecionadores salivarem é Ellis Regina, do começo dos 60, em um tempo tão remoto que ela ainda escrevia seu nome com dois eles. É um de seus dois ou três únicos discos gravados para a CBS, antes de fincar os pés na Phillips. Valor: R$ 600. E, entre os que partiram, saudades e arrependimento ficam do dia em que a coleção dos Beatles originais trazida de Londres foi-se com alguém que apareceu no lugar certo e na hora certa. Eram as edições originais, as primeiras em LP lançadas na Inglaterra. Cada um hoje custaria US$ 100. Anna e Eric, pinheirenses de carteira, - e Edgar estaria na mesma classificação - guardam nostalgias analógicas das quais o filme deita e rola para o desenrolar da trama. Eric diz que não gosta de CD. Anna vai mais longe: "Parei no tempo, como o Durval. Quando vi que o LP estava perdendo espaços para o CD foi um baque. Daquele momento em diante, passei a ouvir menos música. Não tenho mais o apego que tinha na época de meus vinis." A loja de Edgar está intacta nas lembranças. Foi lá que Anna achou impecáveis LPs de Caetano Veloso, Gal Costa e Novos Baianos. Quando havia decidido fazer o filme, em 1995, ela pegou uma câmera e foi fazer uma foto. A loja havia sido fechada no começo daquela semana e o senhor Edgar já estava longe. Edgar caprichou no exílio. A reportagem tentou encontrá-lo sem sucesso procurando seu contato com vários amigos da era do vinil. O próprio Eric era um dos maiores. "Íamos para o Rio de Janeiro comprar discos para vender em São Paulo, bons tempos." Luiz Calanca, da Baratos Afins, lembra que era um senhor que não queria problemas. "Ele se aborreceu antes do CD surgir, quando as lojas passaram a vender discos com carimbos de promocionais, que só iam para jornalistas. Como não queria problemas com a polícia, desistiu dos negócios." E Anna só sabe que ele se mudou para Santos. "Não fiquei com nenhum contato. E não sei se ele sabe sobre o filme." Mas sobre ele sabe-se que foi alfaiate antes de fazer o ganha pão nos vinis. Quando um cliente não podia pagar em dinheiro por um serviço, aceitava receber em LP mesmo. Só não aceitava nada riscado ou com defeito. Era fã da velha guarda de Francisco Alves e Silvio Caldas. Como aquele sorriso maroto de Tim Maia na vitrine, é só lembrança e inspiração para Anna.

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