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Mudanças na Ancine repercutem entre cineastas

Críticas de Bolsonaro ao filme ‘Bruna Surfistinha’ servem de estopim de manifestações indignadas da categoria

Por Luiz Carlos Merten e Guilherme Sobota
Atualização:

Foi um dia agitado para a classe cinematográfica, depois que o presidente Jair Bolsonaro, na quinta, 18, anunciou que vai transferir a Agência Nacional de Cinema, a Ancine, do Rio para Brasília e também invocou valores familiares para protestar que, “com dinheiro público, se façam filmes como Bruna Surfistinha”. Na sexta, 19, após participar de um evento do Ministério da Cidadania em homenagem ao Dia Nacional do Futebol, Bolsonaro voltou a falar do assunto: “Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine”. 

Em conversa com o Estado, a produtora Mariza Leão disse que estava atordoada. “Eu não vou polemizar com o presidente e até acho que devemos todos ter muita calma. Ele sentiu-se incomodado porque a Bruna é uma p..., mas cada um tem seus heróis. O dele é o coronel Ustra, os meus são o Cazuza, o Paulo Freire, o Betinho. O que me parece importante lembrar é que estamos num estado democrático de direito e qualquer decisão para extinguir a Ancine terá de ser debatida no âmbito do Congresso.” 

Imagens do filme 'Bruna Surfistinha', com Deborah Secco Foto: RIO FILME

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A presidente do Sindicato da Indústria Cinematográfica, Simoni de Mendonça, também pede calma. “Temos visto nos últimos tempos o presidente se exaltar e, como homem reativo, dizer coisas que depois não sustenta. Não digo que seja impossível extinguir a Ancine, mas acho improvável. Há todo um processo legal envolvido, ritos que é preciso cumprir. Não me parece ter muita diferença se a sede é em Brasília ou no Rio. O importante é o reconhecimento de que essa ideia de filtro é inaceitável e também que nosso cinema cresceu muito. É uma indústria. A par de sua importância cultural, paga impostos, representa empregos. Temos voz, representatividade e é necessário criar canais para falar com o presidente, esclarecê-lo. Estreitar nossos vínculos com o Congresso, que é o espelho da sociedade.”

Marcus Baldini, como diretor de Bruna Surfistinha, foi o homem que provocou a indignação de Bolsonaro. Ele rebate o presidente dizendo que o filme é um projeto importante tanto pela questão artística quanto pela econômica. “É um filme com olhar humano sobre uma questão relevante e presente na vida das pessoas. Seu impacto pode ser medido em números – mais de 2 milhões de pessoas assistiram ao filme nos cinemas, outros milhões na TV. Bruna empregou 500 pessoas diretamente, pagou milhões em impostos, gerou receita para o governo e foi premiado pela Academia Brasileira de Cinema.” A atriz Deborah Secco, estrela do filme, diz ter ficado um pouco chocada de o filme ter sido colocado nesse lugar. “O filme retrata não só a história real de uma garota de programa, mas de outras milhares de mulheres que estão nessa situação. O que a gente queria era debater o assunto, saber como elas lidam com isso e como a população lida com essa realidade. Uma das funções da arte é essa, é fazer com que todos consigam debater, resolver questões que por milhares de vezes são esquecidas ou escondidas”, afirma a atriz, em nota. 

Luiz Carlos Barreto, o Barretão, é um dos grandes produtores do cinema brasileiro. Ligado a clássicos do Cinema Novo, produziu filmes indicados para o Oscar pela Academia de Hollywood – O Quatrilho e O Que É Isso, Companheiro? Barretão lembra que toda essa confusão começou com a MP 2228, editada em 2001 e que nunca foi votada pelo Congresso, adquirindo força de lei. 

A MP criou o Conselho Nacional do Cinema, como órgão misto, do governo e da classe, responsável pela formulação das políticas públicas, e a Ancine e a Secretaria do Audiovisual como órgãos executores dessas políticas no audiovisual. Com o tempo, e por uma série de mudanças, os poderes da Ancine foram hipertrofiados e ela se apoderou do Conselho, passando a formular as políticas. Uma taxa que havia sido elaborada em 1976, no governo Geisel, a Condecine, foi incorporada em 2015 pela lei 12485, que passou a cobrar o setor de telefonia, por ser também exibidor de imagem. Essa contribuição dá mais de R$ 1 bi por ano e com base nela foi criado o Fundo Setor do Audiovisual, que legalmente não existe. É apenas uma sigla, sem personalidade jurídica nem CNPJ. Esse fundo, pago por produtores, exibidores, telefonias, etc, tem função específica, como observa Mariza Leão. Só pode ser aplicado em audiovisual. Se não for assim, extingue-se, não vai para nenhuma pasta. Então, adverte Barretão, o que há é um emaranhado de confusões que precisam ser normatizadas sem preconceito ideológico, pelo bem do setor.

“Ao investir contra Bruna Surfistinha, Bolsonaro não cerceia a liberdade de expressão. Esperta e simplesmente diz que os produtores devem usar recursos próprios. É questão a ser discutida”, adverte Barretão. Quando capta um recurso, o produtor não recebe um cheque do Tesouro, mas do investidor. “Mesmo assim, somos forçados a prestar contas, submetidos a uma burocracia de repartição pública. Bolsonaro podia se poupar e simplesmente anunciar a revogação das mudanças na MP original, feitas ilegalmente.”

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