Memórias em Super-8 é autodocumentário

Emir Kusturica, cineasta famosíssimo no mundo, é também músico. O filme é sobre sua banda No Smoking, que sobre uma base folclórica dos Bálcãs, acrescenta rock-and-roll e anarquia

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Por Agencia Estado
Atualização:

- Para quem for assistir a Memórias em Super-8, algumas informações prévias. Seu diretor (e também personagem, já que se trata de um autodocumentário) Emir Kusturica, é cineasta famosíssimo no mundo, e também músico. Quando não está filmando, e não tem filmado muito ultimamente, gasta seu tempo tocando com a banda No Smoking. O repertório dessa turma é sui generis. Sobre uma base folclórica dos Bálcãs, eles constróem um universo sonoro banhado pelo rock-and-roll e pela anarquia. São instrumentistas, mas também são cômicos, saltimbancos, farsantes e assumem, na estrutura do espetáculo, toda uma tradição secular circense. Quem os assistiu no espetáculo de abertura da Mostra de Cinema de São Paulo deste ano sabe do que se está falando. Pois bem - e nesse ponto a vantagem de quem viu o espetáculo é flagrante - o filme reproduz fielmente o show. Uma conclusão se impõe: aquela aparente anarquia a que se assiste no palco é rigorosamente ensaiada. Ou de outra forma não poderia ser reproduzida com tanto rigor no espetáculo de São Paulo. Mas na realidade, Memórias em Super-8 mostra mais do que um show ou trechos de diversos show em diferentes cidades européias. Revela também os bastidores dos espetáculos, o dia-a-dia da trupe, as brincadeiras entre os músicos, etc. O que se vê é o ar de estudada rebeldia do grupo. Bebem, fumam e se comportam mal. Quando estão entediados, brigam entre si. Não se trata apenas de agressão verbal. Às vezes saem na porrada mesmo. Tudo isso é revelador? É e não é. Mostra um pouco do estado de espírito da trupe de Kusturica e dele próprio. Mas, como sabe qualquer telespectador de um reality show, a presença de uma câmera altera o comportamento de quem se sabe filmado. Então, se tudo às vezes parece espontâneo, outras soa tão forçado quanto as falas das semicelebridades de Casa dos Artistas. Além disso, Kusturica maneja sua câmera com estudado desleixo. Tudo deve ter o ar de um inocente filme doméstico, feito para consumo próprio e nunca destinado a uma platéia que paga e, em tese, deseja um trabalho profissional como retribuição. Esses são os limites de Memórias em Super-8. Porque, se em parte inspirado no sucesso de Buena Vista Social Club, não tem deste a organicidade e muito menos a inspiração. Buena Vista, de Wim Wenders, ia em busca de uma Cuba perdida, que ficara lá atrás no tempo, antes da revolução dos barbudos. A Cuba dos grandes músicos, dos bailes, do glamour de uma Havana boêmia e maliciosa, cuja lembrança leva às lágrimas o escritor Cabrera Infante em seu exílio londrino. O filme de Wenders ganha assim uma aura romântica e nostálgica, que o de Kusturica não tem. Há nele, sim, a evocação da Iugoslávia natal do cineasta, a unificação que não existe mais e cujo destino ele lamentou no polêmico Underground -- Mentiras de Guerra, provavelmente a sua obra-prima. Há em Memórias em Super-8 esses traços dispersos de um país dilacerado, mas predomina certo culto à anarquia, este sim um traço incorporado tanto à ética quanto à poética desse cineasta único. Kusturica parece ver na indisciplina constitutiva dos seus músicos ciganos a única atitude libertária possível em um mundo controlado. O cigano é o antiburguês por definição e é nesse culto que Kusturica concentra hoje sua devoção. Ainda que, contrariando a sua fonte de origem, seja uma devoção expressa em rito ensaiado até o último detalhe. Como complemento da sessão, será apresentado o premiado curta-metragem Palíndromo, de Philippe Barcinsky.

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