Marilyn nasceu para esticar-se em cinemascope

Pacote da Fox com seis DVDs trazem de volta, restaurados, os primeiros clássicos da estrela, entre eles Os Homens Preferem as Louras, O Pecado Mora ao Lado e Nunca Fui Santa. Por Ruy Castro, especial

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Por Agencia Estado
Atualização:

Quando se trata de Marilyn Monroe, é fácil tapear o público. Seu nome e sua foto na capa de um DVD ou VHS são infalíveis em levar o comprador a pensar que se trata de um filme "com ela". Mas nem todos são. No começo da carreira, entre 1948 e 1952, dos 22 aos 26 anos, Marilyn apareceu em dezoito filmes e nenhum deles era um filme "de Marilyn" - suas aparições eram tão relâmpago que, hoje, mesmo sabendo que ela está no filme, até o espectador de olho treinado arrisca-se a perdê-la se piscar. Marilyn podia ser o 14.º nome num elenco de quinze, sua presença limitar-se a trinta segundos sem falas ou, às vezes, fazer um papel até melhorzinho, mas longe das características que a tornariam Marilyn Monroe, primeira e única. A Fox, que a tinha sob contrato, não sabia o que fazer com ela e vivia emprestando-a a outros estúdios, que também não sabiam. Desses 18 filmes, você só terá faíscas da Marilyn da lenda em Loucos de Amor (trinta gloriosos segundos com Groucho Marx), O Segredo das Jóias (pouco mais que isso, mas é o que as pessoas mais se lembram no filme), A Malvada (em que é vítima de uma piada de George Sanders que poderia tê-la desmoralizado, a de que ela fizera o "curso de teatro" da boate Copacabana, em Nova York) e O Inventor da Mocidade (em que, ao acomodar seu incrível traseiro no carro de Cary Grant, ela pergunta, "Como está seu motor?", e ele responde, "Bem. E o seu?") Houve também sua bela aparição como uma prostituta ao lado de Charles Laughton num dos episódios de Páginas da Vida e, emprestada pela Fox à RKO, seu trabalho em Só a Mulher Peca, em que era o quarto nome do elenco e conseguiu fazer sombra a Barbara Stanwick. Todos esses filmes eram bons - não eram filmes de Marilyn. Foi aí que a Fox decidiu finalmente bancá-la. Deu-lhe o principal papel de Torrentes de Paixão e só então sua carreira começou de verdade. Donde, se você é um marilyniano clássico, os filmes que interessam só começam a contar a partir deste. De Torrentes de Paixão, em 1952, até Os Desajustados, de 1961, foram apenas onze filmes (12, se se contar as seqüências que ela chegou a filmar para o inacabado Something?s Got to Give, durante o qual morreu, em agosto de 1962, aos 36 anos). Com essa filmografia tão curta, mas aliada à sua lenda pessoal e às circunstâncias de sua morte, Marilyn entrou para a história do século 20 como poucas mulheres o conseguiram. Donde poder-se-ia esperar que esses produtos (como os filmes são hoje chamados em Hollywood) fossem tratados com o máximo de respeito, tendo em vista inclusive o seu valor de mercado. Mas não foi isso que aconteceu. Até há pouco, os filmes de Marilyn só existiam em VHS ou disc-lasers precários, feitos a partir de cópias em mau estado, com cores desbotadas e nem todos reproduzindo o formato original dos filmes. Este último aspecto merece uma consideração. A carreira de Marilyn deslanchou exatamente na época em que seu estúdio, a Fox, estava lançando a novidade que, pensava-se, iria salvar o cinema da ameaça da televisão: o cinemascope. Seus dois primeiros filmes da grande fase, Torrentes de Paixão e Os Homens Preferem as Louras (ambos de 1952), ainda foram feitos na tela quadrada, mas o seguinte, Como Agarrar um Milionário (1953), já era em cinemascope e o segundo no novo formato em toda a história (o primeiro foi, com perdão da palavra, O Manto Sagrado). E, a partir daí, a Fox só lhe deu a tela larga: O Rio das Almas Perdidas (1954), O Mundo da Fantasia (1954), O Pecado Mora ao Lado (1955), Nunca Fui Santa (1956) e Adorável Pecadora (1960). Em muitos deles, Marilyn se esticava ao comprido em camas ou divãs, ocupando a tela inteira com suas curvas que, em cinemascope, pareciam maiores que a vida. O cinema só não podia adivinhar que, no futuro, o destino daqueles filmes enormes seria, cruelmente, a telinha da TV - na qual, mesmo sendo esta uma 34 polegadas, o cinemascope transforma-se numa tira. Mas não importa: os filmes foram feitos para aquele formato e tosá-los pelas beiradas, para fazê-los caber numa TV quadrada, era uma amputação. Além disso, Marilyn tinha nascido para esticar-se em cinemascope. Bem, afinal, a Fox agora começou a tomar jeito. Uma caixa com seis DVDs, lançada mês passado em Nova York, traz cinco filmes de Marilyn (Os Homens Preferem as Louras, Como Agarrar um Milionário, O Mundo da Fantasia, O Pecado Mora ao Lado e Nunca Fui Santa) e um documentário de quase duas horas, The Final Days, contendo uma incrível metragem de Something?s Got to Give, descoberta há pouco em seus cofres (os DVDs também são vendidos individualmente). Não se pode querer nada melhor: os filmes foram restaurados a partir dos negativos originais, os formatos foram respeitados e todos trazem legendas em inglês e espanhol, além de atrações extras, como trailers de cada filme em vários países (o trailer de O Pecado Mora ao Lado é o brasileiro, com os títulos em português e a narração em... espanhol). Tudo isso resolvido, o que aconteceu aos filmes propriamente ditos? Os Homens Preferem as Louras está melhor do que nunca. O brilho dos diálogos de Anita Loos, reforçado pelo wit do roteirista Charles Lederer, continua intacto. Jane Russell, o velhinho Charles Coburn e, no papel de namorado rico e abobalhado de Marilyn, o maravilhoso Tommy Noonan (lembra-se dele como o pianista de Judy Garland em Nasce uma Estrela?) - só os estúdios podiam reunir tanta gente boa num único filme. Ah, sim, Howard Hawks é o diretor, mas, para mim, parte da magia de Os Homens Preferem as Louras está na coreografia de Jack Cole, a quem um dia ainda se fará justiça. Ao ver o filme, se você achar que ele foi uma espécie de pré-Bob Fosse no uso minimalista dos dedos, mãos e joelhos, não estará errando - uma das dançarinas da companhia de Cole, na época, era Gwen Verdon, futura sra. Bob Fosse. Foi ela quem entregou os truques de Cole para Fosse. Como Agarrar um Milionário continua divertido, por causa de Marilyn (que ali destronou tão definitivamente Betty Grable como a loura oficial da Fox que Betty encerrou a carreira) e do cinemascope, que é o verdadeiro astro do filme. Tudo é feito para mostrar a amplidão do apartamento onde se passa a história: os janelões que se abrem sobre Nova York, os imensos sofás que tomam a tela. Ali se vê como o cinema queria jogar pesado para humilhar a ridícula caixinha da televisão (e, como sabemos, não deu certo: a caixinha ganhou). Quanto a No Mundo da Fantasia não melhorou nem piorou. É aquilo mesmo: um novelão (a história de uma família do show business), servindo de pretexto para o desfile de inúmeras canções de Irving Berlin. O elenco é uma multidão: Dan Dailey e Ethel Merman fazem os pais, Donald O?Connor, Mitzi Gaynor e a sensação vocal da época, Johnnie Ray, fazem os filhos; e Marilyn é a presença que vem desagregar o clã. Com tantas estrelas no pedaço, sobra pouco espaço para cada uma - mas só Marilyn pára o filme, e nos obriga a voltar para ver de novo, com dois números musicais: After You Get What You Want e Heat Wave. Sim, sempre se poderá dizer que, neste filme, ela estava meio gorda e dançando mal - mas, se você estiver exibindo o filme para os amigos, perceberá que essa opinião é exclusivamente feminina. Já O Pecado Mora ao Lado, de Billy Wilder, conseguiu um milagre: melhorou ainda mais. As cores não são mais aquelas, esmaecidas e quase mortas, que se pode ver no VHS ou nas repetidas exibições na televisão. Agora, nesta edição em DVD, ficaram vivas e vibrantes, inclusive na boca e na pele de Marilyn - ela nunca esteve tão deslumbrante, "inocente", sensual e capaz de despertar ruídos imorais nos homens. E talvez nunca tenha estado tão bem como comediante. Quanto a Wilder, é sempre um espanto: com este filme, ele criou o seu Walter Mitty particular (o homem que compensa suas carências e frustrações com uma rica vida da imaginação), deixando no chinelo o próprio James Thurber, criador do mito. Um bônus imprescindível desta nova versão de O Pecado Mora ao Lado é o documentário sobre o filme, incluindo o teste de Walter Matthau para o papel de Tom Ewell (Wilder o aprovou, mas a Fox o rejeitou), a filmagem da cena do vestido na grade do metrô (com ângulos inéditos, mostrando muito mais calcinha e coxas do que na versão oficial) e a seqüência completa do dedo do pé de Marilyn preso na torneira da banheira (com a cena censurada em que o operário deixa cair a chave inglesa dentro da água e enfia o braço na espuma, quase entre suas pernas, para tirá-la). Pelo que se depreende do documentário, o simples fato de O Pecado Mora ao Lado ter sido feito já foi uma façanha. O Código Hays estava em plena vigência em 1955 e não permitia que o adultério fosse tratado de maneira tão cínica. Na peça original de George Axelrod (também co-roteirista do filme), o marido ia para a cama com a vizinha. No filme, isso nunca poderia acontecer, mas Wilder e Axelrod driblaram espetacularmente a censura, ao nos fazer "ver" tudo que se passa na cabeça do personagem. Uma piada secreta do filme é quando Tom Ewell se refere várias vezes a um amigo que, assim que a mulher sai de férias, aproveita para tatuar-se e chama-o pelo nome de Charlie Lederer - é o mesmo Charles Lederer, amigo de Wilder e roteirista de Os Homens Preferem as Louras. A única decepção do pacote fica por conta de Nunca Fui Santa, que, para mim, "piorou" - ou talvez sempre tenha sido tão falado, paradão e previsível, e eu é que não me lembrava. Assim como Os Homens Preferem as Louras e O Pecado Mora ao Lado, este também saiu de uma peça de teatro - mas que diferença em termos de agilidade, ritmo, savoir-faire. Pode não ser só a diferença entre Hawks e Wilder, de um lado, e Joshua Logan, de outro - os dois primeiros só dirigiam cinema, e Logan era, principalmente, diretor de teatro. Pode ser também a diferença entre Anita Loos e George Axelrod, teatrólogos divertidíssimos, e William Inge, autor da peça original e que era uma espécie de Tennessee Williams light, mas ainda pesado. Mesmo assim, Marilyn tem um grande momento no filme, logo no começo, desafinando horrores, de propósito, ao cantar That Old Black Magic (e só quem sabe cantar consegue fazer isto). Em 1956, ela já estava sob a orientação de Paula Strasberg, a megera do Actor?s Studio, mas, nesse caso, devemos ser-lhe gratos por ter convencido Marilyn a cantar "mal" - outras estrelas talvez não topassem, temendo que o público acharia que elas cantavam daquele jeito. E, finalmente, o documentário The Final Days, dirigido por Patty Ivins, é incrível. De seus 117 minutos, quase meia hora é de Marilyn em Something?s Got to Give, seu filme com Dean Martin, dirigido por George Cukor. Marilyn estava tendo todos os problemas do mundo durante sua produção: altas intoxicações alcoólicas e de barbitúricos, um romance frustrado com Bobby Kennedy e a Fox vendo o dinheiro escorrer pelo ralo à medida que ela faltava continuamente ao serviço. Mas, no dia em que aparecia para filmar, que frescor, que luz, que beleza. Estava fazendo 36 anos e era uma grande mulher - é só conferir a seqüência em que sai nua da piscina, mostrada inteira. A Fox, já tendo um problema do tamanho de um elefante em Roma, com Elizabeth Taylor em Cleópatra, resolveu sacrificar Marilyn, demitindo-a (com o que Dean Martin, solidário, demitiu-se em seguida, e o filme foi arquivado). Poucas semanas depois, Marilyn morreu de overdose. O documentário é triste e, ao mesmo tempo, exuberante ? e, surpreendentemente, não poupa críticas à própria Fox. A Fox está se reabilitando no caso Marilyn. Mas ainda falta lançar, em DVDs com essa mesma qualidade, Torrentes de Paixã, O Rio das Almas Perdidas e Adorável Pecadora. Até lá, continua de castigo.

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