Maria Fernanda Cândido enfrenta o desafio de ser fera

Atriz encarna a terrível Marquesa de Merteuil na peça 'Ligações Perigosas'

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Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

Ela chegou no horário marcado. Usava calça larga - dessas de fazer exercícios -, tênis e uma camiseta cinza. Nos ombros, trazia uma sacola grande, de pano. E sorria. Timidamente. Como fazem as mocinhas de telenovela. Não é a maquiagem nem as câmeras de TV que transformaram Maria Fernanda Cândido no protótipo da heroína. Enquanto ela conversa com os colegas, anda pelos camarins ou espera no palco a hora da cortina se abrir é possível entender por que a atriz sempre interpretou personagens com rasgos de bondade e justiça. Maria Fernanda tem o que se poderia chamar de "physique du rôle" de boa moça: bonita, simpática, discreta. Sem palavras, olhares ou risos fora do lugar. Por tudo isso, soa improvável sua escalação para viver a maquiavélica Marquesa de Merteuil, um dos mais terríveis papéis da literatura universal.

 

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É a primeira vez que a mãe de Tomás (4 anos) e Nicolas (2 anos) interpreta uma vilã. A partir de sábado, ela protagoniza Ligações Perigosas, adaptação de Christopher Hampton para o romance de Choderlos de Laclos, que chega ao Teatro Faap. Nos anos 1980, a história dos sádicos amantes ganhou fama renovada após estrear nas telas pelas mãos de Stephen Frears. O filme mereceu sete indicações para o Oscar, arrebatou três estatuetas. E, ainda hoje, grande parte do público traz na memória a imagem de Glenn Close, que se sagrou como a própria encarnação do mal.

 

Divas. A Merteuil que Maria Fernanda construiu para si é diferente. Sua perfídia não é explícita. Não aparece em trejeitos ou no tom de voz. "Pensei em alguém que não tivesse uma imagem pública de vilã, que não estivesse identificada com esse rótulo", comenta o diretor, Mauro Baptista Vedia. E é assim que a atriz diz ter conduzido sua personagem.

 

Suas referências passam ao largo da Bette Davis, de O Que Terá Acontecido a Baby Jane? ou de outras tiranas clássicas. Sem os traços típicos das malvadas, espelhou-se antes na altivez das antigas divas Catherine Deneuve e Gena Rowlands. "Merteuil não é uma bruxa má. É uma mulher aristocrática, inteligente. Sua maldade está na dissimulação. E por isso mesmo não poderia ser caricatural", defende.

 

 

Para reforçar o protagonismo de Merteuil, a encenação pincelou de tons distintos cada um dos personagens: a vilania do Visconde de Valmont, por exemplo, aparece em tintas carregadas, tendendo à galhofa e ao exagero. Apesar do cenário suntuoso e do figurino de época - todos os trajes foram feitos em Portugal -, o diretor recusa o rótulo de realista. "Não são interpretações naturalistas, evito psicologismos." Conhecido por suas montagens dos textos do cineasta Mike Leigh, Vedia prefere falar em um teatro de "climas, atmosferas", que tem o cinema como norte.

 

Na trama, que se passa às vésperas da Revolução Francesa, cabe a Marquesa conduzir todos a sua volta à ruína. "Ela não é só má. Sente prazer na perversidade e passa por cima de tudo para conseguir o que quer", acredita a atriz. Com o intuito de se vingar do ex-amante, não hesita em desgraçar a jovem Cecile de Volange (Laura Neiva). Para isso, une-se ao inescrupuloso Visconde de Valmont (Marat Descartes), que também seduz a virtuosa Madame de Tourvel (Sabrina Greve), unicamente pelo prazer da conquista. "Mas Valmont não passa de um títere nas mãos dela", opina o diretor.

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Foi o papel da italiana Paola, na novela Terra Nostra, que revelou Maria Fernanda. Comparada a Sophia Loren, conquistou uma sequência de personagens na televisão, no cinema e, ocasionalmente, no teatro. Todas boazinhas. Até como amante - recentemente interpretou o pivô da separação de Herivelto Martins e Dalva de Oliveira na minissérie Dalva e Herivelto - Maria Fernanda conseguiu manter a aura. E não foi diferente nos trabalhos mais recentes que o público ainda não viu: tanto na série Afinal, o Que Querem as Mulheres, que Luiz Fernando Carvalho estreia na Globo em novembro, quanto em Aparecida - O Milagre, novo longa de Tizuka Yamazaki, ela encarnará figuras triviais, pautadas pela correção de caráter.

 

Ligações Perigosas é a exceção à regra. "Destoa de tudo que já fiz", ela assente. Mas nada garante que Maria Fernanda não retorne logo ao posto em que parece se sentir mais à vontade: o de moça bem comportada.

 

 

Estudos de personagens atrai o autor, por Luiz Carlos Merten

 

É o dado mais curioso da biografia de Christopher Hampton, pelo menos para espectadores de língua portuguesa – ele nasceu nos Açores, de pais ingleses. Em sucessivas entrevistas para o repórter do Estado – pelo menos quatro –, sempre lamentou não dominar o português, conhecendo os grandes autores dessa língua somente por meio de traduções. Hampton é dramaturgo, roteirista, cineasta.

 

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Sua fama, ele a deve essencialmente a Ligações Perigosas, que adaptou do romance epistolar de Choderlos de Laclos, primeiro para o teatro e depois para o cinema, recebendo o Oscar da categoria em 1988. Para o diretor Stephen Frears, Hampton adaptou também Chérie, de Colette, oferecendo outro belo papel a Michelle Pfeiffer, que já havia sido Madame de Tourvel nas Ligações.

 

Falando sobre a adaptação de Colette, Hampton disse que volta e meia fechava os olhos e imaginava Michelle – ela! – dizendo as frases de Colette. "É uma autora que escreve muito bem, minimalismo com musicalidade, e esse era o desafio, manter a elegância e sutileza da sua escrita."

 

Também era um pouco o desafio de Ligações Perigosas, transposto (o livro) para o cinema. Houve antes a versão de Roger Vadim, com Gérard Philippe e Jeanne Moreau (As Ligações Amorosas), e simultaneamente com Frears o checo Milos Forman fez Valmont, com Colin Firth e Annette Bening. Em todos os casos, os filmes oferecem uma série de grandes papéis, mas os que marcam são os de Valmont e Merteuil, que transformam a arte da sedução numa estratégia militar de conquista. Embora ‘miscast’, John Malkovich consegue ser tão brilhante quanto Glenn Close, mas ela é a rainha de Ligações Perigosas.

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O título é revelador e pode ser aplicado a toda a obra de Christopher Hampton. O que o atrai é sempre o embate verbal e físico que travam entre si personagens espremidos por convenções sociais. Basta ver o filme que ele próprio dirigiu – Carrington, com Emma Thompson e Jonathan Pryce. O filme é sobre a pintora Dora Carrington, que tem medo de assumir a própria sexualidade, o que faz somente ao se ligar ao escritor Lytton Stacey. Ele é excêntrico – e gay. Não consegue assumir nenhum compromisso, mas é com ele que Dora experimenta o amor (e o prazer), para desatino dos homens que a desejam.

 

No teatro ou no cinema, o estudo de personagens é o que atrai o autor. E não importa para onde ele está escrevendo – "O personagem é sempre a chave de tudo. O palco tem suas convenções, o cinema também. O que é preciso é respeitar cada espaço para fazer aflorar o personagem."

 

Ligações Perigosas - Teatro Faap. Rua Alagoas, 903, Higienópolis, telefone 3662-7232. 6ª, às 21h30; sáb., às 21 h; dom., às 18 h. R$ 70 e R$ 80. Até abril. Estreia sábado, 23.

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