'Marcha para Vida' traz histórias de sobreviventes do Holocausto

Documentário brasileiro retrata trajeto pelos campos de concentração de Varsóvia até Auschwitz-Birkenau

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Por Flavia Guerra e de O Estado de S. Paulo
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Os bisavós de Anna Ren morreram no campo de concentração de Auschwitz, no sul da Polônia. A avó foi prisioneira lá. O avô também. "Ela trabalhava na cozinha. Ele era bombeiro. Tinham bons trabalhos. Por isso sobreviveram. Mas se conheceram em campos de trabalho forçado da Alemanha", conta Anna, que hoje é guia do museu em que se transformou o mais sangrento campo de extermínio nazista da história. Anna, em vez de fazer como a grande maioria dos jovens poloneses, e passar o mais longe possível de uma das grandes feridas que a Segunda Guerra deixou em seu país, preferiu rememorar, e reconstruir, sua trajetória todos os dias. Sem mágoas ou rancores que acometem, compreensivelmente, tantos judeus sobreviventes do Holocausto. Sem a culpa que acomete tantos poloneses não judeus. Anna é a cara jovem de um drama que, terminada a guerra, ainda permaneceu soterrado sob a névoa da repressão ideológica do comunismo, regime que dominou a Polônia após os nazistas deixarem o território. Assista imagens do Holocausto Por esses belos acasos, ou não, do destino, foi Anna quem guiou, em fevereiro, a equipe do documentário Marcha para Vida em sua visita de reconhecimento pelo complexo Auschwitz-Birkenau, centro de extermínio onde mais de 1,5 milhão de prisioneiros (a grande maioria judeus, além de outras minorias, como ciganos, homossexuais, presos políticos e até Testemunhas de Jeová) foram assassinados de 1940 a janeiro de 1945, quando o exército soviético libertou o complexo. "Minha avó falava o que viu. Foi ela quem quis voltar para Oswiecim (nome polonês da cidade, chamada de Auschwitz pelos alemães). Ela queria ficar perto do lugar onde seus pais tinham morrido. Meu avô virou guarda aqui quando o campo virou museu, em 1947. Gostaria de saber mais. Mas ele era muito calado." Traumatizada, uma geração se calou. Com décadas de silêncio, muitos relatos se perderam. Hoje, com a abertura política da Polônia (que após a queda do comunismo, em 1989, tem se disposto a debater temas como o Holocausto), o resgate da história das milhões de vidas que se perderam para o nazismo, assim como o de milhares que sobreviveram, é tarefa desta nova geração. E o resgate começou há quase 20 anos, em 1988, quando sobreviventes do Holocausto resolveram pegar pela mão seus jovens descendentes e percorrer com eles a trilha da morte que vai de Varsóvia (capital, no norte da Polônia) até Auschwitz-Birkenau (na Cracóvia), passando por campos da morte como Treblinka, Majdanek, até chegar a Israel. Nascia a Marcha para Vida, que, desde então, ganha mais peregrinos a cada ano. Para este, estima-se que cerca de 15 mil pessoas farão o percurso e se encontrarão em uma cerimônia em Auschwitz em 1º de maio. E são os 20 anos desta peregrinação que Marcha para Vida (o documentário) vai contar. Engana-se quem pensa que será um filme restrito a uma comunidade. "Mais que uma bela história, Marcha faz uma leitura jovem da guerra. E revela o que pensa a juventude que herdou esta experiência, como assimila o que ocorreu e como celebra a vida, sem esquecer o passado terrível por que passaram seus avós. E este é um tema que interessa a todos pelo caráter histórico e humano", declara o produtor LG Tubaldini Jr. A realidade a que se refere o produtor pode também parecer distante do brasileiro. Mas vale lembrar que a comunidade judaica no Brasil é de cerca de 120 mil pessoas e que todo ano cerca de 400 jovens brasileiros participam da Marcha. Este número vai aumentar em 2008, quando também são comemorados os 60 anos do Estado de Israel. Marcha marca também um caso raro do cinema nacional. A produção de um documentário brasileiro e internacional ao mesmo tempo. O documentário foi idealizado pelo publicitário Márcio Pitliuk e tem produção da Latinamerica Internacional e da Conspiração Filmes. A direção, no entanto, fica a cargo de uma jovem americana, Jessica Sanders (que concorreu ao Oscar de melhor curta em 2002 por Sing e foi premiada em Sundance 2005 com o documentário After Innocence). Mas o filme não é só internacional por contar com diretora americana, equipe brasileira e ser rodado em vários países. A meta é também atingir o público pelo mundo. Esta é uma tendência forte que vem sendo firmada pela nova geração de produtores brasileiros. Marcha tem orçamento de cerca de R$ 3 milhões, deve ficar pronto no fim do ano e participar de festivais de cinema no Brasil e no exterior. Previsões audaciosas, mas à altura de uma produção que será rodada em formato HD digital (e ser transferida para película 35 mm) e passar por quatro países: Brasil, EUA, Polônia e Israel. "A primeira fase começa agora em abril. Jessica chega e já começam as entrevistas com os participantes brasileiros da Marcha", conta Tubaldini. "Em seguida, volta para os EUA, onde realiza entrevistas com os americanos. Voltamos para a Polônia no fim de abril e percorremos a Marcha até chegar, em maio, a Auschwitz, onde haverá uma cerimônia com participantes e líderes políticos de todo o mundo", explica o produtor paulista. "A fase final será em Israel, onde a Marcha chega a seu objetivo que é não remoer com mágoa e rancor os horrores por que passaram os judeus, mas celebrar a vida. É transmitir para as novas gerações a história que foi terrível, mas sem esquecer que este é um caminho que celebra a reconstrução", completa Jessica. "Sempre quis saber mais sobre a Marcha. Não havia informação. Resolvi contar esta vivência. E a parceria com o Tubaldini foi crucial", diz o publicitário, que conheceu o parceiro de projeto em 2006, quando o produtor montou sua peça Iidiche Mamma Mia. "Escrevi a comédia para falar das diferenças, e semelhanças, entre a comunidade judaica (já que eu sou judeu) e italiana (minha mulher é filha de italianos). E propus ao Tubaldini documentar a Marcha", conta Pitliuk, que, com o fotógrafo Márcio Scavone, vai editar também um livro fotográfico sobre a Marcha. Superada a primeira fase, a dupla partiu para a Polônia. "Precisávamos conhecer o terreno em que queríamos semear. Descobrimos lugares incríveis e que ainda há histórias maravilhosas que precisam ser contadas", acrescenta o produtor, revelando-se, em uma comparação grosso modo, mas não equivocada, uma espécie de Oskar Schindler brasuca. Aderiu ao projeto por profissionalismo e acabou se apaixonando pela cultura judaica. "Achei que seria um grande desafio, mas, principalmente nesta última viagem, percorrendo todos os campos e conversando com tantos especialistas e pessoas comuns que viveram este drama, virei um entusiasta", confessa ele, que, com Pitliuk, Jessica, a produtora-executiva Valéria Amorim e Scavone refizeram, em fevereiro, os caminhos da Marcha em uma viagem não só de ‘pesquisa de locação’, mas de descobertas e encantamentos. A repórter viajou a convite do governo polonês

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