Manoel de Oliveira, o legado de um grande artista centenário

Diretor recebeu das mãos de Gilles Jacob uma Palma de Ouro especial por sua extraordinária carreira

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Nos últimos tempos, as notícias tornavam-se cada vez mais alarmantes, dando conta da deterioração da saúde de Manoel de Oliveira. Não ajudava muito a crise que assola Portugal. Mesmo uma instituição nacional como Manoel tinha dificuldades para conseguir financiamento para seus filmes, e ele tinha sempre uns dez prontos para ser rodados. O cinema era sua vida, dava-lhe disposição. Em São Paulo, Claudia Cardinale, que fez com ele O Gebo e a Sombra, disse como se admirou ao constatar que o já centenário Manoel não dispensava uma boa sessão de natação para chegar bem disposto ao set. Cercado por técnicos e artistas, com seu roteiro na mão, tornava-se jovem. Agora, o tempo, a idade e talvez a inércia abateram-no de vez.

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Histórias sobre a longevidade de Manoel de Oliveira tornaram-se lendárias e reforçaram o mito do autor português. Em São Paulo, como convidado da Mostra de Cinema e beirando os 100 anos, Oliveira explicou seu rompimento com o produtor Paulo Branco dizendo que tinha de pensar no futuro (e Branco não estava dando conta de administrar seus muitos projetos). Ele convidou um ator de teatro português para um filme, o cara lamentou, disse que estava com a agenda lotada, mas Oliveira o tranquilizou, acrescentado que era para seu filme de 2014. “Meu avô pensa que é imortal, e se deprime quando se dá de que não conseguirá fazer as dezenas de filmes que ainda tem planejados”, disse aqui mesmo em São Paulo, e na Mostra, seu neto Ricardo Trêpa.

O inevitável ocorreu. Manoel de Oliveira morreu nesta quinta-feira, 2, faz algumas horas. Os problemas respiratórios, doença de velho, o perseguiam. Tinha 106 anos – Manoel Cândido Pinto de Oliveira (seu nome completo) nasceu no Porto, em 1908, no seio de uma família da alta burguesia nortenha, com origens na pequena fidalguia. O pai foi industrial e o primeiro fabricante de lâmpadas de Portugal. Muito jovem, frequentou os jesuítas, mas era o primeiro a admitir que foi mau aluno. Preferia o atletismo, e foi campeão nacional de salto com vara. Foi também piloto de automobilismo. A prática esportiva, somada à boa constituição, talvez explique a saúde de ferro que lhe permitiu viver mais de um século. Mas ele foi também um boêmio e um belo homem, quando jovem. Não resistia a um rabo de saia e ganhou fama de sedutor, o que seguiu sendo – até o fim da vida, nunca deixou de ser galante com as mulheres. Elas o amavam, as suas estrelas – Leonor Silveira, Catherine Deneuve, Chiara Mastroianni, Claudia Cardinale.

Aos 20 anos, frequentou a escola de atores de Rino Lupo, cineasta italiano que se havia radicado no Porto e foi um dos pioneiros do cinema português. Por meio dele, conheceu a obra do vanguardista alemão Walter Ruttman. Berlim, Sinfonia de Uma Cidade impressionou-o tanto que ele teve a ideia de fazer, em 1931, Douro, Faina Fluvial. A crítica portuguesa detestou, a estrangeira gostou – e muito. Oliveira foi fazer sua formação técnica nos estúdios da Kodak, na Alemanha. De volta, participou, como ator, do segundo filme sonoro português – A Canção de Lisboa, mas confessou, mais tarde, não ter nenhuma atração por aquele tipo de cinema popular.

O cinema se tornaria uma atividade bissexta. Em 1942, estreou na ficção com Aniki-Bobó, um terno retrato da infância no cru ambiente neorrealista da Ribeira do Porto. O fracasso de público levou-o a se dedicar aos negócios da família e só em 1956 – 14 anos mais tarde – ele assina outro filme, O Pintor e a Cidade. Novo fracasso – de público. Em 1963, O Ato da Primavera marca uma revolução no seu percurso – Oliveira inicia em Portugal a prática do que os críticos definem como a antropologia visual no cinema. O Ato é um documentário encenado. Seguiu-se A Caça, uma ficção, inversamente, realizada como documentário. O filme teve problemas com a censura salazarista. Uma cena foi suprimida e, por conta do que pareceu a provocação de um diálogo, Oliveira foi preso na PIDE, a polícia secreta da ditadura portuguesa.

Só a partir de O Passado e o Presente de 1971, a carreira cinematográfica torna-se regular e, assim mesmo, ainda se passarão alguns anos (e alguns grandes filmes, como Amor de Perdição, Francisca, Nice – A Propos de Jean Vigo, Le Soulier de Satan e Os Canibais), antes que Oliveira, a partir de Non ou a Vã Glória de Mandar, de 1991, realize um filme por ano, todos os anos. É a fase da consagração internacional. A crítica francesa cai de amores de Oliveira e Cahiers du Cinéma o elege um de seus favoritos. Leon Cakoff, na Mostra de São Paulo, traz os filmes e o próprio diretor, que se torna uma figura conhecida (e querida) dos cinéfilos paulistanos.

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Ao rejeitar o cinema dito popular, Oliveira fez sua opção pelo cinema de autor. Sua base é literária (O Dia do Desespero, sobre Camilo Castelo Branco; Vale Abraão, uma parceria com a escritora Agustina Bessa-Luís sugerida pela Madame Bovary de Gustave Flaubert; Palavra e Utopia, inspirado no Padre Vieira), mas se há uma coisa que caracteriza seu cinema é a invenção. Vou para Casa oferece a Michel Piccoli a chance de ter uma das maiores atuações do cinema, na pele de um velho ator shakespeariano. Cinema Falado tem a mais simples e a mais genial ideia que jamais ocorreu a um autor – num cruzeiro marítimo, o capitão convida meia dúzia de passageiras à sua mesa e o grupo se entende falando cada um(a) em sua língua: inglês, francês, português, grego etc.

Em 2008, o ‘cher Manoel’ recebeu das mãos de Gilles Jacob uma Palma de Ouro especial por sua carreira. Honrarias nunca lhe faltaram, e ele foi condecorado pelo presidente de Portugal e também recebeu o doutoramento honoris causa pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Dirigiu o longa O Gebo e a Sombra, incorporando duas atrizes míticas a seu elenco, Claudia Cardinale e Jeanne Moreau, e concluiu o curta O Velho do Restelo, reunindo numa conversa autores lendários que foram decisivos na sua formação humanista e intelectual – Luís de Camões, Camilo Castelo Branco, Miguel de Cervantes. Manoel de Oliveira teve uma bela vida. Dela, fica agora o legado de uma obra que foi exigente como poucas na história do cinema. 

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