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‘Luneta do Tempo’ é uma ópera popular regida por Alceu Valença

Músico pernambucano faz sua estreia como diretor, evocando a saga de Lampião e Maria Bonita

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Luneta do Tempo é o que se costuma chamar de “objeto cinematográfico não identificado”. Disco voador audiovisual, não se comporta como filme comum. Toma direções inesperadas, frustra os que esperam uma narração linear, mas recompensa quem se deixa surpreender por atos inusitados de beleza visual e musical. A música é soberba – e isto não surpreende quando se conhece o nome do diretor e, claro, autor da trilha, o sempre versátil e inovador músico pernambucano Alceu Valença. 

O filme é muito pessoal, como o próprio cineasta (estreante) informa. Baseia-se muito em sua infância, em especial, nos relatos do seu pai, contemporâneo da era do cangaço. Diz Alceu que seu pai chegou a visitar Angicos, o lugar onde Lampião e seu bando foram tocaiados e onde morreram Virgulino e Maria Bonita. Para todos efeitos, foi o fim da era do cangaço, em 1938. E o pai de Alceu, segundo seu relato, chegou a ajudar a enterrar alguns mortos dos combates entre eles e a volante e trouxe para casa algumas lembranças. Entre as quais um daqueles vistosos chapéus de cangaceiro, cheio de adereço. 

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Desse modo, Luneta do Tempo tem em Lampião (Irandhir Santos) e Maria Bonita (Hermila Guedes) seus personagens principais. Eles são perseguidos sertão adentro pela volante comandada por Antero Tenente (Servilio de Holanda, do Grupo Piolin). A ação mostra combates, bem filmados, mas reserva pausas para reflexão. Entre elas, a de Lampião que contempla a eternidade após a sua morte física. 

Sendo um projeto pessoal de Alceu, Luneta teria mesmo de tomar caminho musical por excelência, o de uma ópera popular. Quer dizer, cheia de música, cor e ritmo. Mas a música impregna também a maneira como a história é concebida e montada. Para dizer que, uma vez que se entra no espírito da obra, e que se aceita ser o cinema possível de uma quase infinita variedade de linguagens, a experiência sentida é de prazer estético. 

Isso porque, além de aplicar à obra seus talentos musicais conhecidos, Valença também surpreende no aspecto visual. Usa enquadramentos inusitados e gosta de planos-sequência bem construídos. Muitas vezes, usa a câmera subjetiva, por exemplo quando Antero é capturado por Lampião e pendurado de cabeça para baixo, o espectador passa a ver as imagens invertidas. Esse é apenas um exemplo entre muitos outros. 

Além do mais, Valença recicla seu conceito de ópera com a vertente que lhe é muito próxima, a da literatura de cordel. Desse modo, a história toma uma aura mágica, como a do encontro entre os cangaceiros e um circo mambembe, que perambula pelo sertão. Ligadas pelo fio da trajetória de Lampião e Maria Bonita, as tramas vão se sucedendo e se interligando, formando um tecido complexo, não linear, que vai e vem no tempo, embora Alceu diga que obedece à lógica aristotélica. Nem tanto, mas como a música serve de guia e berço ao espectador, este pode se deixar levar por essa obra inqualificável, de alma barroca e muito bela. 

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