Lee Chang-dong diz como Murakami e Faulkner impregnam 'Em Chamas'

Vencedor dos prêmios da crítica e especial do júri no Festival de Cannes, filme do diretor coreano é um dos melhores do ano

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Vencedor dos prêmios da crítica e especial do júri no Festival de Cannes, em maio, Burning/Em Chamas, de Lee Chang-dong, é o candidato da Coreia do Sul a uma vaga no Oscar, que disputa com o brasileiro O Grande Circo Místico, de Cacá Diegues. Os dois filmes estão em cartaz nos cinemas brasileiros. Em Chamas é sobre um aspirante a escritor que reencontra amiga de infância e, por meio dela, se relaciona com um homem misterioso. É um grande filme — dos melhores do ano. A seguir, as respostas da entrevista com o diretor, feita por e-mail.

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Durante quase dez anos você esteve afastado do cinema, fazendo política em seu país. Como foi a experiência?

Fui o Ministro da Cultura da Coréia entre os filmes Oásis e Miryang. Para mim, foi um período em que prestei um serviço público para o povo. Como era um trabalho que não combinava comigo biologicamente, tive a sensação de vestir uma roupa que não combinava com o meu corpo, além de sofrer o peso constante da responsabilidade. Mas não me arrependo. Fiz meu melhor e até tive certa satisfação.

Durante esse período não foi tentado por nenhum roteiro ou projeto? 

Depois de Poesia, durante oito anos me concentrei em diversos projetos, três deles tiveram roteiros concluídos, mas decidi suspendê-los. Isso porque eu não encontrava resposta para 'Preciso mesmo fazer isso?' Entre esses projetos, havia histórias sobre a raiva. Hoje em dia, as pessoas parecem estar com muita raiva em todo o mundo, independentemente da sua nacionalidade, religião ou classe. A razão pela qual decidi fazer Em Chamas foi pela sua história sobre a raiva da juventude.

O cineasta sul-coreano Lee Chang-dong Foto: Pine House Film

Como chegou à história curta de Murakami? 

A emissora japonesa NHK me fez uma proposta. Inicialmente, pensei em apenas produzir, deixando a direção para algum realizador jovem, mas acabei dirigindo por diversos motivos. A escritora Jungmi Oh, que trabalhou comigo nos últimos cinco anos, foi quem me recomendou Barn Burning, Queimar Celeiros, entre os 80 contos de Murakami. O conto de Murakami é sobre um homem que queima um celeiro como hobby. Apresenta um pequeno mistério sobre se ele realmente queimou o celeiro, o conto termina sem resolver isso. Me interessei pelo final ambíguo, queria expandir esse pequeno e breve mistério de forma cinematográfica, com múltiplas camadas de mistérios maiores. Achei curioso que (William) Faulkner tenha um conto com o mesmo título, não senti que fosse uma coincidência. O Queimar Celeiros de Faulkner é a história de um agricultor pobre e seu filho pequeno que colocam fogo no celeiro de outro por raiva. Se o celeiro de Faulkner é objeto de raiva que causa dor da vida, o celeiro de Murakami parece que não é um objeto real, mas um produto da imaginação, ou uma metáfora. Os dois escritores estão em lados opostos no modo de contar histórias. E, apesar de Em Chamas basear-se no conto de Murakami, está também ligado ao mundo de Faulkner, cheio de dor, raiva e culpa da realidade. Em outras palavras, poderia dizer que Em Chamas é a história de um jovem Faulkner que vive no mundo de Murakami. Como o jovem protagonista de Faulkner, que sente culpa e teme pelo incêndio provocado por seu pai, Jongsu olha para o mundo pós-moderno liso, sofisticado e conveniente, com sofrimento e raiva herdados do seu pai. Há algo de fato errado, mas você não sabe qual é o problema deste mundo misterioso.

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Há um mistério cercando a personalidade de Ben. Ele é rico, Jongsu é pobre, e tem o sonho de ser escritor. A diferença (luta?) de classes é um tema forte no filme. Você queria representar dessa forma a sociedade sulcoreana?

O mundo parece hoje cada vez mais abundante, sofisticado e conveniente, do ponto de vista material. Entretanto, a desigualdade econômica está pior do que no passado. Só que, como tudo isso está meio escondido, parece que não temos problemas. A desigualdade está se tornando cada vez mais sofisticada. Não se trata apenas da sociedade coreana, é um problema mundial. O aspirante a escritor Jongsu, olha sensivelmente para este mundo. Ele tem dificuldade para arranjar emprego, assim representa a situação de muitos jovens na Coreia. Está desesperado, mas inerte e sua raiva o queima internamente. Existem outros jovens como Ben. Desfruta da riqueza material, mas no seu interior há um grande vazio. É o vazio do homem moderno, que materialmente está abundante e poderia fazer qualquer coisa, mas não faz nada. Os dois mostram os dois lados da juventude contemporânea.

Duas cenas são muito fortes, a da dança e a explosão final de violência. Gostaria que falasse da importância delas e como foram preparadas, encenadas?

A cena da dança e a última são as duas cenas que me ocorreram inicialmente quando conversei com a roteirista sobre o enredo. Essas imagens foram os catalisadores que me levaram a fazer o filme. A cena de dança de Haemi é como o núcleo do filme, lá pelo meio. O brilho de pôr do sol, a bandeira esvoaçante, a melodia de jazz de Miles Davis, o belo corpo da garota, o quintal sujo, são todos os elementos da vida que precisam transmitir a sensação de mistério. O tempo se constrói entre escuridão e luz, realidade e surreal, feiúra e beleza, felicidade e presságio numa só unidade. E o mais importante é sensação de liberdade. Hami dança Great Hunger, como os bosquímanos do deserto de Kalihari. O diretor de fotografia e eu preparamos a cena para que não ficasse artificial, mas com uma impressão ter sido capturada ao acaso com naturalidade. A cena final consiste em dois cortes. Algumas ações são vistas como tomadas longas à distância e outras são estruturadas para que possam ser vistas diante dos olhos. Queria dar ao público a sensação direta de estar em uma cena de crime, e ao mesmo tempo criar a distância, de forma a objetivamente olhar para ela. É quando as emoções no inconsciente de Jongsu explodem e Ben e ele finalmente se comunicam. É como se as respirações dos dois virassem uma só.

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É um filme de gênero? Existem elementos misteriosos - o gato, por exemplo?

Pode-se até dizer que Em Chamas seja um suspense, mas é difícil vê-lo como um filme de gênero habitual. Um suspense com mistério normal acabará por revelar o mistério. Mas eu queria conectá-lo com o mistério de nossas vidas, o mundo em que vivemos, em vez do fim de mistério de um caso. Além disso, queria que fosse um questionamento sobre a própria narrativa, sobre o cinema. Neste filme, os pequenos detalhes da vida cotidiana tornam-se elementos do mistério e conduzem para mistérios maiores: luz refletida na parede, gato, telefonema desconhecida no meio da noite, gaveta secreta de alguém e assim por diante.

Sua atração pela literatura é muito forte. Você já fez um filme chamado Poesia. Até que ponto a literatura alimenta seu cinema? 

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A literatura é sempre uma fonte de inspiração para mim. A linguagem da literatura estimula a imaginação do leitor. Às vezes, recebo uma inspiração para um filme que não estava relacionada ao conteúdo da própria leitura. E uma boa literatura faz a gente questionar e refletir sobre nossa vida e o mundo.

Dando sequência à pergunta anterior, em algum lugar o sr. já disse que seus roteiros são concebidos como narrativas de livros. Isso ocorreu nesse caso? 

Costumava escrever meus roteiros sozinho, mas ultimamente tenho trabalhado com a roteirista. Depois de um longo brainstorming, a roteirista primeiro escreve um longo pré-roteiro. Pode-se dizer que é um pouco semelhante a um romance, mas é muito mais conciso e instrutivo. Assim, não existe uma expansão da imaginação que a linguagem de um livro pode causar, mas a busca pela maximização da transmissão de instruções nesta escrita. Uma vez criado este pré-roteiro, elaboramos o roteiro com mais elementos cinematográficos.

No final, o sentimento é ambíguo. Jongsu liberta-se para escrever suas histórias, mas terá de arcar com as consequências de seus atos. Sua intenção era nos deixar - a nós, espectadores - com esse problema de fundo moral? 

Na verdade, o filme está perseguindo o mistério sobre quem seria Ben, mas no final eu queria que o público fizesse a pergunta: 'Quem seria Jongsu?' Espero que a imagem da última cena com seu corpo nu, como um bebê com medo, tristeza e tremor e sentimentos desconhecidos, fosse transmitida como algumas questões cinematográficas. Onde ele está indo agora, nu? O que ele fará no futuro? Isso também está relacionado com o romance que pretende escrever. Que tipo de livro escreveria sobre esse mundo misterioso, como costumava dizer? O que ele ou nós desejamos? Essas questões podem ser éticas, políticas ou sociais, e também só uma questão de pura imaginação cinematográfica.

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