"Lavoura Arcaica" confirma favoritismo em Brasília

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Se não foi uma consagração, andou perto disso. Lavoura Arcaica, atração da primeira noite da mostra competitiva do Festival de Brasília, foi assistido em religioso silêncio durante as duas horas e cinquenta e três minutos de projeção e bem aplaudido no final. Certo, não foi uma consagração como aqueles dez minutos de aplausos recebidos por Murilo Salles e seu Como Nascem os Anjos no mesmo Cine Brasília anos atrás. Mas também o longa-metragem de Luiz Fernando Carvalho, baseado no romance homônimo de Raduan Nassar, joga num tom mais reflexivo, e caminha, por vias sempre tortuosas, para um final que nada tem de catártico. Assim, com essa boa recepção, confirma seu favoritismo para ganhar os principais prêmios desta 34ª edição do festival. No entanto, no começo da noite ninguém poderia acreditar numa sessão serena e de quase recolhimento espiritual, porque tudo começara num ambiente cheio de som e fúria. A causa: a exacerbação de um problema crônico do Festival de Brasília, a superlotação da sala. O festival é um sucesso, todo mundo quer assistir aos filmes, e o Cine Brasília virou um point da moçada. Ok, mas tudo tem limite e dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. Assim, vender mais ingressos do que permite a capacidade do cinema e distribuir convites e credenciais a Deus e todo mundo cheira a vocação para a catástrofe. Com três vezes mais gente do que seria razoável, o Cine Brasília parecia uma nau dos insensatos. O curta-metragem O Poeta, de Paulo Munhoz, foi projetado sob um coro de vaias, gritaria generalizada e gente atirando objetos uns nos outros. Do filme, em si, ninguém entendeu nada. A bem da justiça para com o cineasta, deveria ser reprisado. Depois da exibição do curta-metragem, o apresentador da noite, o ator Eduardo Conde, teve de pegar o microfone e avisar que o longa não começaria enquanto a platéia não se aquietasse. Meia hora depois, mesmo espremida, a galera acabou encontrando seu espaço, reuniu reservas de civilidade duramente poupadas, e o filme pôde enfim começar. "Cheguei a pensar em não passar o filme naquelas condições", disse depois o diretor Luiz Fernando Carvalho. No entanto, ele ressalvou que ficou surpreso com a reação respeitosa da platéia depois que a projeção começou. "Criou-se a liturgia necessária para se assistir ao filme, e foi ele próprio, o filme, que reuniu as condições para isso". Revisto, Lavoura Arcaica revela com mais clareza seus problemas e suas virtudes. A excessiva reiteração entre imagem e palavra é um desses problemas. Assim, se a voz em off refere-se a um corpo coberto por folhas, a imagem ilustra exatamente o que se diz. O procedimento é recorrente e se deve, talvez, ao fascínio do diretor pelo texto de Raduan Nassar. Mas o prejuízo cinematográfico é evidente. Percebe-se também uma "barriga" na duração, uma certa dispersão dos elementos dramáticos que concorre para desfazer o clima desejado. O tom dos atores é muitas vezes declamatório, porque vindo sem transição da literatura. E algumas simbologias seriam dispensáveis, porque bastante óbvias, como é o caso da montagem paralela entre o André adulto seduzindo a irmã e o André menino capturando uma pomba na arapuca. André (Selton Melo) é o rapaz que se afasta da família patriarcal, porque lá vivia sufocado pelo excesso de amor materno, pelo pai autoritário e, sobretudo, pela atração irresistível que sente pela irmã, Ana (Simone Spoladore). Há alguma coisa de demoníaco em André porque um dos temas do livro, e portanto do filme, é essa luta entre a ordem e o desejo. O pai (Raul Cortez) é o representante da lei e o filho, o da transgressão. Esse é o sentido da cena, magnífica, na capela, quando André blasfema, já não contra uma lei que impede seu amor incestuoso, mas contra a lei em geral, simbolizada, naquele momento, pela ordem religiosa. O pai é o senhor da palavra, que deve ser lida de maneira literal. André é subversivo porque inverte a relação das coisas, discute a obrigatoriedade de certas relações e passa a reinterpretar as palavras. Pode pôr o mundo de cabeça para baixo. É um rebelde, mas um rebelde nostálgico da ordem, o que não é incomum. Por isso deseja reintegrar-se. Mas a volta desse filho pródigo não trará a paz e sim a perdição. Selton Melo dá conta desse papel difícil e ambivalente. Raul Cortez é extraordinário como o pater familias. E o pungente e sufocante amor materno tem em Juliana Carneiro da Cunha uma inspirada tradução. Simone Spoladore encontra o justo ponto da sensualidade, apresentando-se ao espectador exatamente como deve parecer ao protagonista. Vistos pela segunda vez, alguns filmes desabam. Outros se engrandecem. É o caso de Lavoura Arcaica.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.