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'Laranja Mecânica', de Kubrick, é dispositivo para fazer pensar

Protagonista é um certo Alex, interpretado por Malcolm McDowell, sociopata que comanda uma gangue juvenil numa Londres futurista

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Em tempo de Copa do Mundo, algum incauto pode achar que o título Laranja Mecânica se refira à seleção holandesa, que goleou a Espanha impiedosamente. Ao contrário, foi a revolucionária Holanda de 1974 que se inspirou no título do filme de Stanley Kubrick - este mesmo que volta ao circuito, com cópias restauradas. O filme é de 1971, e baseia-se no romance de 1962 de Anthony Burgess. Ambienta-se num espaço futurista mas sua inspiração óbvia é o fenômeno da delinquência juvenil, já preocupante no início dos anos 1960. Mas, claro, artistas da estatura de Burgess e Kubrick podem centrar seus focos num tema, mas abrem-no como um leque, que abarca outros assuntos, a saber, a distopia social da modernidade, a psicologia behaviourista como ferramenta de reeducação e normatização de condutas, etc. Sem negar sua qualidade de espetáculo, o filme é, também e talvez em especial, um dispositivo para fazer pensar. O protagonista é um certo Alex (Malcolm McDowell), sociopata que comanda uma gangue juvenil numa Londres futurista. A história divide-se numa primeira parte, em que os crimes do bando são mostrados da maneira a mais crua, e uma segunda, em que, capturado o chefe, passa-se à sua reeducação. Plasticamente deslumbrante (como acontece de modo geral com as produções de Kubrick), Laranja Mecânica conta também com uma trilha sonora de sonho, pilotada por Walter Carlos no sintetizador Moog, uma novidade para a época. O músico depois trocou de sexo e passou a assinar como Wendy Carlos. Entre as músicas inclui-se Beethoven, o compositor predileto de Alex. Em especial, o 4º movimento da Sinfonia Coral (a 9ª), intitulado de Ode à Alegria. Na distopia imaginada por Burgess e recriada por Kubrick, são técnicas behavioristas bastante primitivas (ainda que pareçam sofisticadas) as que são empregadas para "curar" o delinquente Alex, fazendo com que seu gosto musical volte-se contra ele próprio. Qual o preço a pagar nesse procedimento? Esta é a pergunta que não quer calar e ressoa, mesmo após o término do filme, na cabeça do espectador. Esta e outras questões: qual a origem do Mal? Ele é produto da sociedade ou mora no fundo de cada ser humano e vem à tona por razões misteriosas? Existe algo de comum entre o tenebroso (mas também sedutor Alex) e mais bondosa das criaturas? Tudo isso é intrigante, perturbador, e Kubrick, pelo brilho de sua direção, não deixa de nos jogar de um lado para outro. Ora fazendo com que nos identifiquemos com Alex, ora jogando com a nossa repulsa em relação ao personagem, Kubrick nos nega qualquer porto seguro. Qualquer certeza. Melhor assim: nos obriga a pensar. E a sentir. Porque Laranja Mecânica é uma experiência tanto intelectual quanto sensorial. E, sim, a grande seleção holandesa de 1974, de Cruyff, Neeskens e Rep, adotou o apelido simplesmente porque sua camisa era alaranjada. Está certo: jogando, era tão bela quanto um filme de Kubrick.

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