Kore-eda retoma grandes temas em ‘Nossa Irmã Mais Nova’

Cineasta da perda e da compensação, japonês é um cronista das transformações que atingem a família japonesa

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

No Festival de Cannes do ano passado, no jardim de um hotel a menos de uma quadra da Croisette, Hirokazu Kore-eda recebia grupos de jornalistas para falar de Nossa Irmã Mais Nova. O filme que estreou na quinta, 3, na cidade, terminou esquecido na premiação do júri presidido pelos irmãos Coen, mas obteve ótimas críticas e, meses mais tarde, venceu o Festival de Yokohama. Kore-eda recebeu seu primeiro prêmio internacional em Veneza, 1995, e foi a Osella de Ouro de direção, por Maborosi. Depois, trocou o Lido por Cannes e virou habitué.

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Seus primeiros filmes tratavam dos mistérios da vida e morte. Moborosi, Depois da Vida. A partir de Ninguém Pode Saber, de 2004, Kore-eda virou um cronista das transformações que atingem a família japonesa, sem deixar de se ocupar da morte. Ninguém Pode Saber recebeu um prêmio de interpretação em Cannes. Tal Pai Tal Filho, ou simplesmente Pai e Filho, o prêmio do júri outorgado por Steven Spielberg. Houve até comentários, na época – 2013 –, de que Spielberg estaria interessado em comprar os direitos para fazer um remake em Hollywood. Kore-eda nunca recebeu a Palma de Ouro – ainda não –, mas tem sido multipremiado no maior festival do mundo. No Japão, coleciona prêmios da Academia de Cinema do país e o Asian Film Award.

Prêmios, prêmios, prêmios. No ano passado, a dois passos da Croisette, Kore-eda rechaçou mais uma vez a comparação com o lendário Yasujiro Ozu. Os críticos sempre fazem a ponte entre os dois por causa do tema da família. “É lisonjeiro, mas não corresponde à realidade. Ozu pensou a família de seu tempo, mas tenho a impressão de que seu estilo era tão forte que ele evoluiu para um pensamento mais abstrato e metafísico. Sinto-me mais próximo de Mikio Naruse, com seus melodramas intimistas e sociais.” E Kore-eda contou como, na última década, perdeu a mãe, o pai e tornou-se, ele próprio, pai de uma garota. “Pode parecer banal, mas isso operou uma mudança muito grande em mim. Meu foco na família está sempre na peça que falta. Morre alguém e me interessa refletir sobre o que ocorre. Na família, e na japonesa em especial, existe sempre um senso de responsabilidade que faz com que alguém, em geral o filho mais velho, assuma a função de quem partiu. Quase nunca é uma tarefa fácil.”

Os filhos de Ninguém Pode Saber tentam esconder a ausência da mãe. A família de Still Walking/Andando reúne-se todo ano para lembrar o filho mais velho, que morreu afogado ao salvar a vida de outro garoto. E, em Pai e Filho, ao ser desfeita a troca de bebês na maternidade, um dos pais sofre um abalo – o choque do embate entre afeto e laços de sangue. O que ocorre quando o filho querido vira um estranho? O afeto some? “Pode parecer melodramático, mas sinto uma falta imensa dos meus pais. Lamento as coisas que não nos dissemos. Pego-me pensando – ‘Como isso, ou aquilo, deve ter sido difícil para minha mãe. Se ao menos eu soubesse disso...’ Creio que, de alguma forma, todas essas questões terminam vindo para o cinema que faço.”

É tudo sempre doloroso, mas belo. Em Nossa Irmã Mais Nova, três mulheres vivem distantes do pai, na casa que pertenceu à avó. O pai morre e, no funeral, elas descobrem a existência da irmã mais nova, que fica sozinha. Levam-na para a casa, mas a convivência começa complicada. Presente está a sombra de que foi a mãe da irmã mais nova que provocou a dissolução da família. E que a garota viveu todos estes anos com o pai. Em Cannes, alguns críticos reclamaram que falta um grande conflito ao filme. É como se Nossa Irmã Mais Nova se construísse nos hiatos de uma narrativa. Nada de gritos nem ranger de dentes. Até os ressentimentos são polidos. Kore-eda dá grande importância aos detalhes. “Mais do que em qualquer outro filme meu, esse atribui grande importância ao tema ‘comida’. As irmãs querem se comunicar e o não dito transparece quando elas falam do peixe, ou do vinho. São detalhes preciosos, que crescem na tela.”

O cineasta foi muito marcado pela figura da mãe, que amava cinema – colecionava fotos de Vivien Leigh, a Scarlett O’Hara de ...E o Vento Levou –, mas ficou alarmada quando o filho lhe disse que queria ser cineasta. “Ela achava que eu devia ser funcionário, ter um emprego sólido.” O pai foi soldado na Manchúria. Esteve num campo de prisioneiros dos russos. “Quando bebia, ele nos contava como tudo aquilo havia sido horrível. Meu pai era um homem bom, mas viveu uma vida errática, trocando de trabalho, revoltado numa sociedade que sempre preservou a tradição e o conformismo.” Como homem e artista, Kore-eda acha que a família formatou sua sensibilidade. “O fato de eles (pai e mãe) pertencerem à classe trabalhadora foi decisivo. O trabalho é importante em Ozu. Veja os filhos de Viagem a Tóquio. Mas o que lhe interessa (a Ozu) é a rotina. A questão social é mais relevante em Naruse. Eu, às vezes, me sinto cria de Ken Loach. E gostaria que meus filmes fossem tão emotivos e sociais quanto os dele.”

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