Karim Aïnouz refaz a trajetória de Madame Satã

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Por Agencia Estado
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O cenário, supostamente, é um cabaré da Lapa, nas primeiras décadas do século passado. Foi reconstituído num casarão do Catete. É lá que Karim Aïnouz roda uma cena importante de seu primeiro longa, Madame Satã. Apesar do título, o personagem ainda não é o mitológico malandro que, décadas mais tarde, seria entrevistado pelo Pasquim e entronizado, no imaginário brasileiro, como uma das personalidades mais estranhas da vida pública nacional. Madame Satã só vai surgir no fim do filme de Aïnouz. O que ele conta é a história de João Francisco dos Santos. Quando João Francisco vira Madame Satã, o filme acaba. É uma cena noturna. Poderia ser rodada, quem sabe, à tarde, já que se trata de um estúdio, mesmo improvisado. Mas o diretor roda mesmo à noite. Até por conta da natureza do personagem, um homem lunar, que passou toda a vida envolto nas brumas da noite, Madame Satã é feito quase que exclusivamente de cenas noturnas. Nesta noite, Aïnouz dá continuidade a uma cena que começou a rodar na noite anterior. A produtora Isabel Diegues, filha de Cacá, um dos mais importantes diretores do País, mostra o vídeo com a gravação das cenas rodadas antes. Renata Sorrah faz Vitória dos Anjos, uma cantora da noite. Canta no cabaré, em francês, com voz rouca, sensual. Vitória é uma deusa para João Francisco. Ele é seu camareiro, tudo o que sonha é ser Vitória. João Francisco é homossexual, mas sua opção não está em discussão no filme. O que atrai Aïnouz é o que está além da homossexualidade de João Francisco, embora a pergunta não deixe de fazer parte da estrutura dramática do filme. Como um gay, que as pessoas tendem a identificar como personagem feminino, delicado e afetado, virou um lutador capaz de derrotar no tapa um punhado de 12 machos? Como virou um assassino temido e respeitado? A cena é viscontiana. A câmera filma Vitória de longe, por meio das frestas de uma cortina de contas. Entra, de costas para a câmera, João Francisco. Um corte e a imagem dele agora é frontal, mas o que o espectador vê em primeiro lugar é a mão cheia de anéis, que encobre parcialmente o rosto. Você já viu essa cena antes. É a imagem emblemática de Ludwig, a Paixão de um Rei, de Luchino Visconti, mas lá, em vez dos anéis, o rei louco da Baviera encobre o rosto com a mão enluvada. Cabra-macho - Na trama do filme, João Francisco não se contém e imita os gestos de Vitória no camarim. Ela vê e se irrita. Vai queixar-se ao amante, Gregório, interpretado por Floriano Peixoto. Gregório interpela João Francisco. O negro jovem, altivo e atrevido cobra o que Vitória lhe deve. Gregório tenta colocá-lo em seu lugar e aí ocorre a primeira luta de João Francisco, que mostra, no braço, que o mulherzinha pode ser cabra-macho, sim senhor. Vem de longe o fascínio de Karim Aïnouz pelo personagem. O diretor é jovem. Tem apenas 35 anos. Realiza o que deve ser o sonho da maioria dos mortais. Vive no triângulo formado por Nova York, Paris e Fortaleza (é cearense). Fez mestrado em Teoria e História do Cinema na New York University. Foi aluno no Witney Museum Independent Study Programm, também em Nova York. E foi assistente de direção ou montagem de Todd Haynes, em Poison, e de Emir Kusturica em Arizona Dream. Madame Satã é o primeiro longa de Aïnouz, mas no currículo ele tem curtas e médias como O Preso, ficção em vídeo, de 19 minutos, sobre um lavrador nordestino, Seams, de 29 minutos, um documentário experimental sobre o machismo no Brasil, e Paixão Nacional, de 45 minutos e em 16 mm, sobre a relação entre colonialismo e desejo no mundo contemporâneo. Ele ganhou um prêmio da Hubert Bals Foundation, da Holanda, para fazer a pesquisa de Madame Satã. O roteiro, que o próprio Aïnouz escreveu, impressionou Walter Salles, que colocou a Videofilmes na parada. Com a VideofilMes e a distribuidora Lumire integradas ao projeto, começou a ser montada a produção de R$ 3 milhões. Surgiram importantes parcerias internacionais. A Videofilmes e a Lumire firmaram uma parceria inédita com o Studio Canal, na Europa, e a Miramax, nos EUA, para a co-produção, não só de Madame Satã, mas também de Cidade de Deus, outro filme (de Fernando Meirelles) em rodagem atualmente, no Rio. No acordo, a Videofilmes e a Lumire (e a 02, no caso de Cidade de Deus) são as produtoras executivas e a Miramax e Studio Canal cuidam das vendas internacionais. Madame Satã será distribuído no Brasil pela Lumire e, nos EUA, pela Miramax. O homem, não o mito. E um homem especial, gay e barra-pesada, bom de briga, de braço e de navalha. João Francisco (e Madame Satã, depois) tinha um físico elástico. Era musculoso sem ser pesado. Foi a chance de Lázaro Ramos. "Esse papel é um sonho", define o baiano de 22 anos. Ele não é estreante em cinema. Já fez O Homem do Ano e As Três Marias, mas os filmes de José Henrique Fonseca e Aluizio Abranches estão em finalização. Ainda não estrearam. Ramos conta que surgiu no Olodum, em Salvador. Foi para o Rio disposto a fazer carreira no teatro. Alterna agora o palco, com a peça A Máquina, dirigida por João Falcão, a partir de um texto de sua mulher, Adriana Falcão, e os filmes. Detalhe das unhas - Diariamente, submete-se ao ritual da maquiagem. O cabelo exige cuidados especiais, para ficar como o personagem exige. E o detalhe são as unhas, duas delas, as dos dedos polegar e mindinho, escandalosamente pintadas de vermelho. "Madame Satã foi precursor numa série de coisas, até nisso." Faz o gesto que indica que o lendário personagem pintava as unhas assim para fazer o "hang loose", que para ele talvez não tivesse o mesmo significado que tem hoje para os surfistas. Ramos não tem medo de ficar estigmatizado pelo personagem tão forte. O fato de João Francisco ser gay não o incomoda. "Sou um ator", explica. Não seria se não tivesse essa capacidade de entender a complexidade do outro (e expressá-la). Viu A Rainha Diaba, de Antônio Carlos Fontoura, que muita gente, erroneamente, considera baseado na figura de Madame Satã. O próprio Fontoura é o primeiro a desfazer o equívoco, dizendo que Plínio Marcos, que escreveu a história, se baseou num gay famoso de uma boca de fumo de Santos. Ramos, de qualquer maneira, ficou impressionado com o trabalho de Milton Gonçalves, embora diga que o seu João Francisco, na fase pré-Madame Satã, é outra coisa. O diretor concorda. Aïnouz também conhece e gosta do filme de Fontoura, um dos mais importantes do cinema brasileiro nos anos 70, mas o seu Madame Satã tem outra proposta. "É a história de um homem que quer viver em paz, com suas idiossincrasias, e é forçado a ingressar na violência." João Francisco conhece o seu lado escuro. Convive sem trauma com sua porção mulher. Ganha o apelido famoso ao desfilar, no carnaval de 1938, com uma fantasia inspirada no filme homônimo de Cecil B. de Mille. Com Madame Satã, é o Rio de 1907 a 1938 que Karim Aïnouz recria. Para isso conta com a cumplicidade do diretor de arte Marcos Pedroso, do brilhante Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky. O diretor de fotografia é Walter Carvalho, de Central do Brasil. Aïnouz propõe desafios que o fotógrafo encara com profissionalismo e satisfação. Ele poderia fazer Madame Satã em digital. Preferiu fazer em película. Poderia usar as câmeras de 16 mm, cuja mobilidade serviria ao projeto. Prefere usar as de 35 mm. E filma em lugares exíguos, como o cabaré da Lapa, recriado no Catete. Aïnouz não demoliu nenhuma parede para facilitar a movimentação da câmera. Isabel Diegues conta que ele fez um storyboard, desenhando as seqüências mais importantes do filme. Mas o próprio Aïnouz diz que fez isso só para se garantir. "No set mudo tudo; aproveito a energia dos lugares, das pessoas." Está entusiasmado. Preste atenção nesse filme. Madame Satã, com estréia prevista para o ano que vem, vai dar o que falar.

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