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Julia Roberts desglamouriza-se em 'Olhos da Justiça'

Filme transpõe para os EUA trama que deu Oscar ao diretor Juan José Campanella

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Existe uma arrogância tipicamente hollywoodiana que consiste em acreditar que qualquer êxito ‘regional’ pode ser melhorado e transformado num evento planetário pelo cinemão. Às vezes, isso até pode ser verdade, e The Departed, a versão de Andy Lau, virou Os Infiltrados, de Martin Scorsese, coroado por todos aqueles Oscars. Embora seja uma afirmação polêmica, considerando-se a quantidade de tietes de Scorsese ‘infiltrados’ na crítica, é o melhor filme dele em anos, e o único, é verdade que meio clonado no êxito de Lau, a lembrar o grande diretor que foi, lá atrás.

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A síndrome do remake atinge agora O Segredo dos Seus Olhos, longa do argentino Juan José Campanella que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010. O Segredo virou Olhos da Justiça, e o filme de Billy Ray estreia nesta quinta, 10. Na rede você encontra uma entrevista de Julia Roberts dizendo quanto gostou do original. Ela elogia o formato ‘thriller’ e acrescenta que Ray acertou ao homenagear O Segredo, já que melhorar o filme seria impossível.

Que fique logo claro – com ou sem homenagem, o remake não se compara ao original. O ideal seria ver, e analisar, o filme norte-americano sem compará-lo ao argentino, mas como isso é impossível é bom ir por partes. O Segredo conta a história de um ex-oficial de justiça aposentado que investiga o estupro e assassinato de uma mulher. O crime ocorreu em 1974 e Ricardo Darín, que faz o papel, promete ao marido da vítima que tudo fará para chegar ao culpado. O caso vira sua obsessão e, agora aposentado, ele espera transformar sua investigação num livro. É ajudado por um amigo do tribunal e pela antiga chefe, por quem foi sempre apaixonado. O twist final com certeza contribuiu para o impacto que o filme provocou em plateias de todo o mundo – e que levou à vitória no Oscar.

No filme de Billy Ray há uma mudança de gênero e Julia Roberts faz a agente do FBI cuja filha é assassinada. Chiwetel Ejiofor fica obcecado pelo caso. Nicole Kidman é sua chefe, por quem, como Darín, ele é apaixonado. No original, o crime ocorria no momento de transição em que Juan Domingo Perón voltava ao poder por meio de eleições, mas ele morria e era substituído pela mulher e vice-presidente, Maria Estela (Isabelita) Perón. Iniciou-se um conturbado período da vida política argentina que culminou com o golpe militar de 1976. No remake, o relato também se desenrola em duas épocas – 2002 e 2015. Talvez seja o aspecto mais interessante da transposição, porque a ‘América’, após o 11 de Setembro, vive um clima de intensa paranoia. Os policiais da trama integram um grupo antiterrorismo. Veem perigo em toda parte e é nessa vibe que a filha de Julia é assassinada. O suspeito está infiltrado numa organização que pode estar por trás dos ataques ao World Trade Center, e isso complica a investigação.

Numa cena de Olhos da Justiça, alguém diz para Julia – “Meu Deus, como você envelheceu.” E é verdade. Crime sem perdão, a morte brutal da filha tem um efeito devastador sobre a linda mulher. Julia recebeu o Oscar por Erin Brockovich, de Steven Soderbergh, mas do ponto de vista da transformação física se Olhos da Justiça se assemelha a algum outro momento de sua carreira é com Mary Reilly, de Stephen Frears, sobre a governanta de Dr. Jekyll, que vira o sinistro Mr. Hyde na adaptação de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson. Julia tem a boca amarga de outras intérpretes míticas – Bette Davis, Jeanne Moreau e, no Brasil, Lilian Lemmertz. A desglamourização da estrela dá o tom de todo o filme, fotografado por Daniel Moder, marido de Julia (na vida).

Desvinculado de O Segredo de Seus Olhos, o filme prende a atenção e possui interessantes momentos que evocam a tradição noir. Mas a questão é a (in)fidelidade ao filme argentino. Com exceção do quadro histórico, tudo o que Billy Ray faz para ‘americanizar’ sua história não a engrandece. Antes a banaliza. Quando o filme tenta inovar, cai em falhas de verossimilhança. Quando segue o original, mata o impacto. Há toda uma construção do olhar nas relações do trio principal – Julia/Nicole/Chiwetel – que pode sinalizar para o twist final. O desfecho, poderoso em O Segredo dos Seus Olhos, fica aqui um tanto artificial. A rigor, ninguém que tenha visto o filme de Campanella ousará dizer que esse é tão bom quanto, ou melhor. Fica a sensação de um afrouxamento. Pior – Campanella, que dirigiu episódios de séries nos EUA, usou o gênero para construir a grandeza de seu filme. Billy Ray faz o caminho inverso. Transforma o que é muito bom, e até grande, num episódio de Law & Order. Mesmo que, eventualmente, seja bom para o público-alvo – que não viu o Campanella –, é pouco.

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