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Judeu nazista é o anti-herói de "Tolerância Zero"

Polêmico filme que estréia hoje marca a estréia na direção do roteirista Henry Bean e lhe valeu o prêmio do júri no Festival de Sundance

Por Agencia Estado
Atualização:

Se você reza na cartilha do maniqueísmo, mantenha-se longe de Tolerância Zero. O filme que assinala a estréia do roteirista Henry Bean (de Justiça Cega) na direção não oferece a ninguém o conforto de poder aderir ao lado certo (qual?) na luta entre bons e maus. Bean ganhou o prêmio do júri no Festival de Sundance. Conta a história de um judeu ortodoxo que vira nazista. E o diretor não desenvolve sua trama por meio de contrastes de claro e escuro. Seu filme move-se num território cinzento, tentando colocar o espectador na cabeça de um personagem que, obviamente, não é simpático e ainda por cima coloca questões das mais perturbadoras. Você poderá até não gostar desse filme, mas não passará incólume por ele. Logo no começo, Danny, o anti-herói interpretado por Ryan Gosling, cobre de pancada um rapaz judeu (como ele) que usa solidéu. Ele se liga a um bando de neonazistas. Ou melhor: lidera o grupo, sendo mais selvagem do que qualquer um de seus liderados. Mas as coisas não são simples e Danny é mais do que simplesmente um herói asqueroso. Por baixo do uniforme, ele veste o manto com que os judeus pedem perdão. E, durante a explosão de vandalismo na sinagoga, trata de salvar a Torá, o livro com as leis de Deus. Danny é um poço de contradições. Se age assim, é porque vive uma fratura extrema. Judeu consciente da sua herança cultural e religiosa, ele quer ter orgulho da sua condição, mas não consegue porque tem ódio do sentimento atávico que os judeus desenvolveram ao longo dos séculos e, para ele, foi cristalizado no Holocausto. É uma tese polêmica do diretor Bean e o seu filme ganha em impacto porque estréia justamente no momento em que já está nas locadoras o DVD, lançado pela Continental, de O Triunfo da Vontade. O documentário de Leni Riefenstahl mostra o congresso do Partido Nazista em 1934. Como um enviado dos deuses, Adolf Hitler rasga as nuvens no seu avião e desce em Nuremberg para ser recebido apoteoticamente pelas multidões. Leni filma impressionantes cenas de estádio. A multidão marchando, batendo continência. Ela jura que não fez uma obra de propaganda. Fez, sim. Quando Hitler ou Goebbels aparecem, são filmados de baixo para cima, como se fossem heróis. O que o filme passa é o fascínio que o nazismo exerce mesmo sobre não fascistas, tema que intriga intelectuais e foi analisado, por exemplo, por Jean Genet. Outra coisa evidente em O Triunfo da Vontade é que Hitler virou uma espécie de Predestinado - para usar a linguagem de Matrix -, porque encarnou um espírito de belicosidade que já havia na Alemanha. É interessante ver o filme com olhos críticos, muito críticos, como é interessante prestar atenção ao que Henry Bean fala sobre esse mesmo problema (ou realidade), só que visto de outro ângulo. O diretor pode ser acusado de sensacionalismo. Afinal, um judeu nazista é algo tão fora de propósito que, num primeiro momento, você pode até pensar que ele fez Tolerância Zero só para chocar. Mas aí existem certos indicadores que confirmam que sua tese não é tão despropositada assim. Nos anos 1960, um judeu chamado Daniel Burros chegou a ser membro destacado da Ku Klux Klan, a organização racista que perseguia negros no Sul dos EUA. Burros matou-se depois que sua identidade foi descoberta e a história foi estampada pelo The New York Times, em 1965, como um exemplo dos tempos conturbados que o mundo então vivia. Continua vivendo. Um filme como Tolerância Zero não é para ser visto impunemente.

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