John Le Carré é destaque em Berlim

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Por Agencia Estado
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Dramaturgo e roteirista, Harold Pinter parece ter tomado gosto pela interpretação. O roteirista de alguns dos melhores filmes de Joseph Losey (O Criado e O Mensageiro), o autor de peças que fazem sucesso de público e crítica nos palcos de todo o mundo, apareceu num pequeno papel de Wit, o filme que Mike Nichols adaptou da peça de Margaret Ebson, com Emma Thompson. Neste domingo, Pinter foi visto de novo no filme de John Boorman, The Tailor of Panama, mas quem monopolizou as atenções aqui no 51.º Internationale Filmfestspiele não foi ele nem o diretor Boorman, mas o autor do livro e co-autor do script. O Alfaiate do Panamá tem qualidades, mas ninguém se arrisca a dizer que sairá com algum prêmio aqui da Berlinale, exceto, talvez, o de melhor ator para Geoffrey Rush. Ele nunca esteve melhor, mas se houve, antecipadamente, um vencedor, foi John Le Carré, que escreveu a obra já editada no Brasil. A coletiva foi ótima, a melhor desse festival, até aqui. Foi possível até conversar rapidamente com Boorman e Le Carré. O bom humor da equipe era evidente. Perguntado por que quis fazer o filme, Geoffrey Rush não vacilou. "Quando descobri, lá pela página 47, que teria de dançar coladinho com Pierce Brosnan numa boate gay cheguei à conclusão de que nada nem ninguém me faria desistir do papel." E por que Boorman quis contar essa história de espionagem? "Para fugir ao inverno na Irlanda; como resistir a uma temporada no Panamá, com seu colorido, sua música?" Brincadeiras à parte, todo mundo acredita no filme. Le Carré explicou o fato de estar presente em Berlim como demonstração do seu entusiasmo por O Alfaiate do Panamá. "É o melhor filme adaptado de qualquer livro meu." Ele ressalta que O Espião Que Saiu do Frio, que virou filme de Martin Ritt, com Richard Burton, era muito bom para a época (primeira metade dos anos 60) mas O Alfaiate é melhor. E quanto a A Garota do Tambor, filmado por George Roy Hill, é melhor esquecer. "It´s a shame" (uma vergonha), resume. Há bastante humor no Alfaiate, a começar pela presença do 007 Pierce Brosnan no papel do agente que recruta o personagem de Geoffrey Rush para o mundo da espionagem. Rush é o alfaiate do presidente do Panamá. Brosnan vê nele uma possibilidade de ter acesso a informações de bastidores sobre o canal. O alfaiate é um pobre diabo. Não sabe nada; além na habilidade no corte de ternos, só é bom na arte de fazer o café da manhã para a mulher e os filhos. Mas o alfaiate embarca na aventura, por dinheiro e também pela excitação, para se sentir mais importante do que é. "Forja uma vida fictícia para ele mesmo", define Boorman. Le Carré, que foi diplomata (acreditado em Berlim), explica o que a espionagem representa para ele. "É uma metáfora da vida; há muita corrupção, muita hipocrisia e materialismo nesse mundo, mas não creio que exista mais do que em qualquer outra atividade humana." No final do Alfaiate, há uma citação do clássico Casablanca, de Michael Curtiz, com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Se você viu o filme (e é impossível que não tenha visto), lembra-se de Bogart abraçado a Claude Rains, dizendo que era o início de uma longa amizade. A frase é repetida por Brosnan, mas aqui o que une os patifes é a roubalheira. Para Le Carré, o tempo dos heróis já passou. Diz que seu objetivo é exaltar a dignidade e o heroísmo das vítimas. É o que ocorre com o alfaiate, forçado, lá pelas tantas, a tomar uma atitude. Essa atitude significa peitar o personagem de Brosnan. James Bond nunca foi tão canalha no cinema. Ainda falando sobre heroísmo, Le Carré diz que essa é a grande diferença entre ele e Ian Fleming, que escreveu as fantasias de 007. "Ele acreditava no machismo, no heroísmo; contava histórias que serviam ao sistema; eu, ao contrário, duvido do sistema." Diz que o fato de limitar sua escrita à espionagem talvez valha como atestado de suas limitações como escritor. Assume que é limitado, mas não resiste a um comentário sobre a colaboração com Boorman no roteiro (que ambos assinam). "John me disse que se essa colaboração funcionasse, nós seríamos incapazes, no fim, de dizer quem escreveu o quê; mas se vocês gostarem muito de algum diálogo em especial, podem estar certos de que é meu", diz, brincando. E quanto ao assunto corrupção, diz que é um dos motivos pelos quais vê com pessimismo a situação da América Latina. "Encerrada a era das ditaduras, temos hoje democracias estáveis na região, mas a corrupção grassa no continente." Boorman concorda. Diz que o que mais o impressionou no Panamá, foi a generosidade das populações carentes. Quanto à classe dominante, é horrível. "Vivem de ostentação, todo mundo tem medo; deve ser um dos lugares do mundo onde há mais ricos cercados de guarda-costas." O diretor não resiste a uma observação indiscreta. Ao falar sobre o apoio que recebeu do governo do Panamá, diz que a senhora do presidente era louca por Brosnan e que o charme de 007 abriu todas as portas para o projeto. É um bom, não grande, filme. Mostra ser possível contar de novo com Boorman, que estava por baixo desde Esperança e Gloria. Depois, entrou em nova trip irregular até fazer O General, lançado só em vídeo no Brasil. Dá agora nova demonstração de que ainda é confiável. O humor do filme é feroz, devastador mesmo. Sobre a sua relação com Hollywood, Boorman diz que não há relação alguma. "Cada filme é uma aventura; é um mundo que não consigo entender." Diz que, num outro nível, Hollywood é outro dos lugares mais corruptos do mundo - "Corrompe os corações e as mentes das pessoas, avilta o papel do artista, o seu compromisso social." A última palavra é de Le Carré. Ele levou seu alfaiate para ver o filme. Tira um cartão do bolso e mostra o nome e o endereço, para provar que não está brincando. O alfaiate gostou de Geoffrey Rush. Diz que se ele não fosse ator poderia dar um bom profissional do corte e costura. "Fazer roupas é outra metáfora; é uma forma de mostrar que o empenho e a dignidade também podem resistir em qualquer parte ou em qualquer função." Até na de fazer filmes.

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