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João Moreira Salles, o entusiasmo e a desilusão

Documentarista fala a Ricardo de Souza de seu trabalho, seu processo criativo, seu novo projeto sobre o pianista Nelson Freire, a desilusão com o documentário, sua relação profissional com o irmão Walter Salles e o caso Marcinho VP

Por Agencia Estado
Atualização:

João Moreira Salles é hoje uma pessoa dividida entre o entusiasmo e a desilusão. Entusiasmo pelo documentarismo, trabalho que, mesmo não reconhecendo, realiza com incontestável competência. Paradoxalmente, sua desilusão deve-se ao mesmo documentarismo, gênero ainda visto como menor diante do cinema ficcional e, por isso, mantido distante do público. Depois de viver seu inferno astral este ano com seu indiciamento por causa do caso Marcinho VP, essa sensação de desgosto poderia ter aumentado. Salles diz que não. Garante que achou válido todo o estardalhaço feito em torno do assunto. "A confusão acabou servindo para as pessoas pensarem sobre o problema", diz o documentarista. "Não tenho vergonha do que fiz." A transformação de Salles em protagonista desse circo midiático e político chamou a atenção da sociedade para o documentário Notícias de Uma Guerra Particular, realizado por ele e Kátia Lund, em 1999, e que registra as várias faces da violência no Rio. Um filme que, por méritos próprios, não dependeria de fatores externos para chamar a atenção. Aliás, como todos os demais documentários de Salles, entre eles China, Futebol, e dois episódios de 6 Histórias Brasileiras (Santa Cruz e O Vale), exibido recentemente pelo canal GNT. Filmes que integram uma obra ainda incipiente, porém consistente, construída a partir de referências conceituais e artísticas que vão de Giotto a Walker Evans. A reportagem conversou com João Moreira Salles numa quinta-feira, quando ele acabara de visitar a Mostra do Redescobrimento, no Ibirapuera. Ao lado do filho Joaquim, o documentarista deixou o pavilhão carregando sacolas cheias de livros de arte. A paixão pelo assunto só não é maior do que o prazer em transmitir o conhecimento que adquire com suas leituras. Salles dá aulas de documentário na PUC-RJ, uma de suas grandes alegrias. "Vejo-me mais como professor do que como documentarista", afirma. "Documentário não faz nada acontecer." Durante uma hora, Salles discorreu sobre seu trabalho, seu processo criativo, suas preferências e referências estéticas o novo projeto sobre o pianista Nelson Freire, a desilusão com o documentário, sua relação profissional com o irmão Walter Salles e o caso Marcinho VP. Você sempre afastou a possibilidade de dirigir longas-metragens, mantendo-se fiel a um gênero que, por diversas razões mercadológicas, continua à margem do circuito cultural. Por quê? João Moreira Salles - Faço questão de dizer que não sou um cineasta, mas um documentarista. Há uma certa militância de cobrar quando vou fazer uma ficção. Não vou fazer. As pessoas querem estabelecer uma hegemonia do cinema, acham que o documentarista é um diretor de ficção que ainda não chegou lá, que está numa escala em que o ponto final é o cinema de ficção. É possível um documentarista ser apenas um documentarista. Quando as pessoas perguntam quando o documentarista vai fazer uma ficção, há um certo preconceito. Ninguém pergunta para o Cacá Diegues quando ele vai fazer o primeiro documentário. Você considera o documentário uma forma de arte? Não saberia dizer se o documentário é uma forma de arte. Antes de tudo é um testemunho. É basicamente alguém querer investigar a realidade, não para fazer militância, não para convencer, apenas investigar. É isso que me interessa muito essa curiosidade pela realidade, que você vai encontrar na revista New Yorker, em pintores de que eu gosto muito, como Vermeer e Giotto. Este último talvez seja minha grande influência, um pintor que deixa de olhar para cima e olha para o lado, que decide mostrar como era a Toscana. Interesso-me por Walker Evans (fotógrafo norte-americano), por exemplo, que mostrou a Depressão americana sem fazer militância, estabelecendo claramente as fronteiras da investigação dele como fotógrafo com as suas simpatias políticas. O que é o neo-realismo italiano senão o cinema de ficção que toma de empréstimo toda a gramática do cinema documental? O documentário é o exercício de transformar a realidade em ficção, já que o diretor "recria" essa realidade no processo de edição. Onde se situam as fronteiras entre esses dois campos? Essa é a grande pergunta do documentário. Toda a nova escola do documentário tenta, de alguma maneira, enfrentar essa questão. O que é legítimo fazer? O que é ético? Talvez o primeiro grande documentarista tenha sido (Robert) Flaherty, que praticamente encenou suas imagens. Nanuk foi totalmente refeito. Na década de 60, surge uma escola de documentário que talvez tenha sido minha maior influência, que foi a do filme direto. Essa escola parte de pressupostos inteiramente ingênuos. O objetivo é não ser notado, ficar pequeno, não dispersar a atenção e filmar durante muito tempo, de forma que a pessoa que no início se sente intimidada pela presença da câmera, com o tempo vai percebendo que ela se torna um fato corriqueiro da sua rotina. É claro que nunca há total objetividade. O fato de você ter escolhido aquela pessoa para filmar, a lente, o lugar para posicionar a câmera e principalmente a hora que vai editar o filme, evidentemente é a sua versão dessa realidade. Você acredita numa função artística e/ou social do documentário? É importante acreditar que não existe isso. Pode até vir a existir. Mas a pior coisa em que um documentarista pode acreditar é que seu trabalho vai modificar a realidade. Isso vai dar a ele uma onipotência e um direito de fazer coisas que não tem o direito de fazer, que certamente vão tornar a obra muito pior do que poderia ser. Alguns exemplos: documentários que transformam em vítimas seus personagens principais. Existe uma linha de documentários que só filmam meninos de rua, doentes terminais, fome na África. Tenho quatro pés atrás com esse tipo de documentário. Acho que esses documentários fazem bem apenas aos documentaristas. Um cara faz um filme sobre a fome na África e nada será modificado na situação, no máximo o sujeito vai ganhar alguns prêmios. Até aí, tudo bem. O grande problema é que se você vai filmar e parte do pressuposto de que seu foco é a vítima, já existe aí um imenso desrespeito. O que você pode sentir em relação à vítima senão apenas compaixão? E a compaixão não faz nada acontecer, só faz as pessoas acharem que você é uma ótima pessoa. O que eu quero é o que fez o Walker Evans, que filmou a Depressão americana e não fez sequer uma fotografia de vítima. E é o melhor retrato da Depressão americana porque não há vítimas, só interlocutor. Penso que quando você acredita piamente que seu documentário tem a força de modificar, te dá o direito de filmar as pessoas em condições que provavelmente elas não gostariam de ser vistas, de miséria humana, de fome, de angústia. W.H. Auden dizia que poesia não faz nada acontecer. Parafraseando o poeta, acho que documentário não faz nada acontecer. Documentário é um gênero, não diria menor, mas para pouca gente, e sempre vai ser. Registrar a realidade incorre em arriscar-se a cair em armadilhas éticas e estéticas? Elas aparecem de filme para filme, é difícil generalizar. De modo geral, as pessoas não sabem o que uma câmera consegue fazer. Grande parte dos documentaristas se cerca dizendo que existe uma autorização formal das pessoas. Usando uma palavra meio besta, é um problema de polissemia. Aquilo que às vezes eu digo, acho que significa uma coisa diferente do que o outro pensa e você passa a ser mal interpretado. Uma frase que você diga acreditando na legitimidade dela pode te trair. No segundo episódio de Futebol, o pai de um dos jogadores diz que o filho não sabe quanto ganha, porque não foi educado para saber o que fazer com R$ 20, 30 mil por mês. Por isso, ele não dizia para o filho quanto ganhava, dava uma mesada para ele à medida em qua ia ganhando. Ele disse isso provavelmente com razão para dizer. A maneira como ele falou deu a entender que ele explorava o filho. Não passou pela sua cabeça que seria interpretado dessa maneira. Aí entra um dilema clássico de um documentarista: você vai ser fiel ao seu personagem ou ao seu filme? Se você opta pelo personagem, sacrifica seu filme e sonega uma informação crucial para o espectador. Se decide pelo filme, vai estar entrando num assunto privado do personagem, que não pediu para ser filmado. Surge o dilema ético... Sim, existe uma relação de profunda desigualdade entre documentarista e documentado, já que você tem a câmera, sabe o que vai ser editado. Noventa por cento dos documentários do Brasil são realizados da seguinte forma: o documentarista vai a uma área de periferia, carente, bate na porta do morador e diz que está interessado em contar a história dele, quer mostrar ao país quais são seus dramas. Em 98% das vezes essa proposta é aceita. Por que o inverso não acontece? Porque moramos num País injusto. Você é o doutor, tem uma equipe quase sempre toda branca, querendo estabelecer esse contrato. Não passa pela sua cabeça que essa família não queira ser filmada. Não existe documentarista inocente, por mais que se comova com aquela situação. Não me venha com aquele papo de que está fazendo aquilo em prol dos menos favorecidos, que para mim é hipócrita, é ingênuo e acaba resultando, o que é mais grave, em maus documentários. Por que resolveu fazer o documentário sobre Nelson Freire? Acho que é um dos maiores pianistas do mundo, que o Brasil ainda não conheceu, só o público que gosta de piano como eu. Acho que deveria ser tão conhecido como todos os outros grandes músicos consagrados. E também porque é um prazer filmar música. Também está sendo bom passar um tempo longe de temas polêmicos, até para voltar renovado, refrigerado. Passados sete meses da confusão em torno do caso Marcinho VP, como avalia o episódio? Acho que foi bom ter acontecido. Primeiro porque, particularmente, não tenho vergonha do que fiz. Depois porque o tamanho da confusão de alguma maneira mostra que o que fiz, sem ter feito com essa intenção, provocou algum incômodo, as pessoas tiveram de pensar sobre o assunto. E pensar em como inserir-se na tragédia brasileira é sempre uma boa discussão. Mal ou bem, as pessoas tiveram de pensar se eu devia ou não ter feito aquilo, se vale a pena não fazer nada ou fazer alguma coisa mesmo se estiver na fronteira do que se deve ou não fazer. E para minha grande surpresa, muita gente, a grande maioria, concordou que é preciso fazer alguma coisa, talvez não o que eu tenha feito. Então, acho que se propôs uma discussão que é virtuosa, rompendo um ciclo de imobilidade. Acho que, particularmente no Rio, se duas pessoas tão diferentes, em pólos opostos da sociedade brasileira, podem conversar com sinceridade trocar idéias, as pessoas que estão no meio podem fazer também. Acho que isso causou uma certa comoção no Rio, porque as pessoas acham que esse diálogo não é mais possível, e isso é uma tolice, ele é possível e está ocorrendo cada vez mais. E aí revela um certo cinismo no Brasil hoje, pois tudo tem de ter alguma coisa por trás. Quer dizer, ou sou traficante, usando o cara, ou querendo o livro para fazer um filme. Enfim, não houve nada disso, só uma conversa, que continuou, quero deixar claro, pois vou visitá-lo na cadeia, mando livros para ele quase todo mês. Acredita que houve um oportunismo político no caso? Houve um inequívoco erro político por parte do governo do Rio. O Garotinho utilizou isso politicamente, é sempre uma boa plataforma, o governador destemido peitando o filho do banqueiro. É tão velho como lata de aveia Quaker, não tem novidade nenhuma nisso. Ele usou o caso para demitir o Luis Eduardo Soares, que era alguém que causava um certo desconforto no governo dele. Foi uma história que reforça o que falei sobre o documentário, pois as pessoas começaram a falar do filme só a partir do escândalo, que nada tem a ver com o documentário. O filme foi exibido dois meses antes pelo canal GNT e, provavelmente, ninguém assistiu, a imprensa não cobriu. Não estou reclamando, é natural que não cubra, pois foi exibida tarde da noite, a agenda cultural dos jornais é imensa. O documentário só foi visto depois que fui indiciado, e há de convir que é uma estratégia muito incômoda ser indiciado a cada documentário que eu faça, para que as pessoas possam falar do filme (risos). Vocês têm muitas diferenças estéticas com seu irmão Walter Salles? Temos muitas. (Pensa muito.) O Waltinho é alguém que acredita que a verdade acaba transparecendo na beleza. Ele não é um formalista, não é a beleza pela beleza. Ele acha que a beleza tem de traduzir o espírito da história que ele está contando. Existe uma preocupação formal em seus filmes, que não é um esteticismo artificial, mas é imaginar que a maneira que você enquadra a cena está intimamente ligada à maneira que você vai contar essa história. Entre os documentaristas que o Waltinho admira está o (Robert) Flaherty, que talvez tenha sido um dos mais perfeitos da história sob o ponto de vista formal, estético. Isso para mim não é importante. Não me importo com a estética suja, com a ausência mal enquadrada, isso para mim não é um problema, às vezes é até uma virtude. Acho que talvez aí esteja a nossa maior diferença. Eu me toco mais por aquilo que não me parece preparado, excessivamente pensado. Prefiro o súbito ataque, o reflexo, Waltinho prefere o raciocínio. Eu jamais poderia fazer Central do Brasil, mas acho um filme quase perfeito, para não dizer perfeito. Mal comparando, Waltinho não teria feito Notícias da maneira que eu fiz, o que não impede que ele ache um filme bom sobre o assunto.

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