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<i>Um Bom Ano</i>, de Ridley Scott, vai além do retrato

Russell Crowe e Albert Finney no elenco da história que, em síntese, mostra o perfil de um cafajeste que se humaniza e consegue criar uma teoria de arte e vida

Por Agencia Estado
Atualização:

Há uma mistura muito interessante de convenção e subversão em Um Bom Ano, o novo filme de Ridley Scott, que estréia hoje. É fácil destacar o carisma dos atores (Russell Crowe e Albert Finney), a beleza das paisagens (a Provence francesa), mas é empobrecedor reduzir o alcance do filme, vendo em Um Bom Ano apenas mais um na série de títulos com que Hollywood mostra a transformação de personagens neuróticos e competitivos que, pelos motivos mais variados, tomam consciência do que representa a vida deles - e mudam. Um Bom Ano parece típico da tendência. Russell Crowe faz o cafajeste da Bolsa de Valores de Londres, um sujeito sem o mínimo de ética e preocupado apenas em mostrar que é o melhor, a qualquer preço. Inesperadamente, Max Skinner (Max-milhão) recebe a notícia de que seu tio morreu e ele, como parente mais próximo, herdou sua vinícola na França. Disposto a ganhar dinheiro (e a desfazer-se rapidamente da propriedade), Max viaja para o local onde passou as férias mais importantes da sua vida, terminando por tomar consciência do canalha em que se transformou - e mudando para melhor. Teoria do cinema de Scott Canalha, Max Skinner sabe desde a primeira cena que é e o tema do filme não é a sua transformação e, sim, outra coisa. Há tempos, Ridley Scott vem construindo uma espécie de teoria do cinema, à qual os críticos não prestam atenção. As cenas de ação de Gladiador não eram só espetaculares. Elas envolviam uma crítica do diretor ao próprio conceito do espetáculo, usando o pão e circo das arenas romanas para debater o pão e circo patrocinado por Hollywood, na atualidade. Tente ver Um Bom Ano por este ângulo e o filme cresce bastante com isso. Apenas um exemplo. Vá lá que sejam - dois. Numa cena, o francês que faz o vinho no terroir que Skinner herdou faz uma referência a Marcel Proust, às mulheres segundo o autor de Em Busca do Tempo Perdido. Este mesmo personagem tem um cãozinho chamado Tati, que remete a Jacques Tati, o criador de M. Hulot (e cenas do filme As Férias do Sr. Hulot aparecem num clipe quando Crowe está no restaurante com Marion Cotillard, que vai ilustrar, digamos assim, o perfume proustiano do relato). Não se trata de simples relação de causa-e-efeito, mas daquilo que os franceses chamam de ´clin d´oeil´. Sabe, quando a gente dá uma piscadinha para uma pessoa, quando acaba de dizer alguma coisa, ou quando vai dizer, para estabelecer uma cumplicidade? Um Bom Ano é todo feito assim. Proust não entra só por causa do que disse sobre as mulheres, mas também por causa do tempo perdido e reencontrado, embora a madeleine que Max encontra no jardim da casa (o copo e o charuto abandonados) levem a uma outra coisa - uma estrutura narrativa à Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, na qual passado e presente coexistem na mesma imagem (e embora seja o som que, às vezes, faça essa passagem). O tempo é um grande personagem O tempo é o grande personagem de Um Bom Ano e, por isso, o filme começa com todos aqueles letreiros (algumas vindimas atrás, muitas vindimas à frente). Essas cenas iniciais estabelecem a convenção, revelam o tio e sugerem a gênese do homem em que Max se transformou, mas também fornecem o ponto para que os dois atores exibam a exuberância dos seus estilos de representação - a non chalance de Finney, a arrogância de Crowe. Por que construir o filme ´para´ os atores? Para falar de cinema, de arte, de vida. O enólogo contratado para dar seu parecer sobre o terroir diz que aquela terra não vale nada, mas como, se ela produz, artesanalmente, o melhor vinho do mundo, o que Max custa a descobrir? O falso e o verdadeiro, mas não o trivial dessa abordagem. Ridley Scott com toda certeza viu Morangos Silvestres, de Bergman (e o filme que o antecedeu, Senhorita Júlia, do também sueco Alf Sjoberg). Viu, não há dúvida, Sideways - Entre Umas e Outras, de Alexander Payne, e talvez tenha visto Mondovino, de Jonathan Nossiter, porque a oposição entre os estilos americano e francês de encarar o terroir é um dos subtemas de Um Bom Ano. O vinho para falar de vida, a arte do vinho para falar da arte de viver - e fazer filmes. Max faz a grande descoberta olhando o filme de Tati, a queda de M. Hulot na água, que remete à sua queda na piscina, só que em vez de água ela está cheia de barro. A partir daí, tudo fica mais fácil - a descoberta do amor e da possibilidade de uma outra vida, é verdade que ameaçada pelo estresse (a fala final do amigo, pelo telefone), mas na qual vale investir. Tudo isso se faz por meio de uma conversa sobre arte. Max observa que o chefe guarda seu Van Gogh no cofre e expõe a cópia, à qual não dá importância justamente porque sabe que ela não vale nada. Qual é o sentido de guardar um Van Gogh no cofre? Deve ser o mesmo de não querer fazer cinema para o público. O risco é, na busca pelo diálogo, cometer o engano de falsificar a realidade, de trapacear. É o que o espectador descobre genialmente por meio da secretária, no desfecho que é melhor não contar, no encontro dela com o rapper e seu empresário. É o arremate perfeito para um filme que comporta múltiplas leituras. Não fique na mais trivial. E, acima de tudo, desfrute o prazer que bons vinhos e bons filmes, como Um Bom Ano, podem proporcionar. Um Bom Ano (A Good Year, EUA/2006, 118 min.) - Drama. Dir. Ridley Scott. 10 anos. Em grande circuito. Cotação: Ótimo

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