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Irmãos Dardenne e Naomi Kawase tiram Festival de Cannes da mesmice

Força de ‘Dois Dias e Uma Noite’ e beleza de ‘Still the Water’ quebraram clima morno que marcava esta edição até agora

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Havia muita gente decepcionada com a seleção, ou achando que o 67.º Festival de Cannes estava meio morno. E aí, em dois dias e uma noite, tudo se transformou. Primeiro foi o longa de Bennett Miller, Foxcatcher, na segunda pela manhã. À noite, Naomi Kawase, com Still the Water, veio mostrar que já é tempo de o Japão voltar ao pódio, o que é bem provável que ocorra, considerando-se que o filme dela, além de belíssimo, poderá levar a presidente do júri, Jane Campion, a quebrar a escrita de ser a única mulher, nestes quase 70 anos, a receber a Palma de Ouro.

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Finalmente, na manhã de terça, os irmãos Dardenne voltaram com força. Esqueça O Garoto da Bicicleta, que já era bom – Marion Cotillard é gloriosa (melhor atriz?) no filme que se chama justamente Dois Dias e Uma Noite.

Ela faz uma trabalhadora que vive um fim de semana infernal. Na segunda-feira, será demitida, se não reverter o quadro de uma votação proposta pelo dono da fábrica. É a demissão dela, ou os colegas terão de desistir de um bônus de mil euros cada. Todo mundo precisa do dinheiro, como Marion precisa do emprego, mas ela vai de porta em porta. Em planos-sequência dilacerantes, Jean-Pierre e Luc Dardenne reafirmam sua mestria por meio de uma proposta que não é só ética, mas coloca em cena escolhas éticas. Lá pelas tantas, Marion pode até regressar ao trabalho, mas alguém terá de ser demitido em seu lugar. E agora – como prosseguir, como contar essa história?

Marion Cotillard é única. Bela, sexy, elegante, glamourosa, ela pode também tirar todos esses ornamentos e con vencer como mulher do povo, deprimida, descabelada, a cara desfeita pelos comprimidos que toma continuamente para se manter de pé, resistindo à pressão. Os Dardenne filmam no seu ritmo. Um filme pequeno – no tamanho de seus personagens, na descrição social. E não só na social. O marido apoia as personagem, mas eles próprios estão num momento delicado. Ela teve um colapso nervoso, há quatro meses não fazem sexo. As coisas se complicam, bem como os Dardenne gostam. A escala da japonesa Kawase é muito maior. Homens e mulheres confrontados com a natureza numa ilha açoitadas por ventos e ondas borrascosas.

Vale a pena lembrar-se de O Piano, que há quase 20 anos valeu a Jane Campion sua Palma. O filme também se passava em boa parte no mar, numa praia, relatando os esforços para transportar o piano do título. Naomi Kawase abre o filme dela com planos do mar, com aquelas ondas que prenunciam tsunamis. Um garoto descobre um corpo boiando na água. Há uma enquete para tentar identificar o morto. Foi morte acidental ou assassinato? O garoto tem uma amiga. O filme conta as histórias de cada um deles. Ele, integrante de uma família separada, vai visitar o pai, que lembra o início de sua relação e se despede do filho pedindo que cuide da mãe. Ela, de uma família mais organizada e amorosa, mas cuja mãe está morrendo.

 

 

 

 

Kawase é muito japonesa no ritmo, e também no panteísmo que habita seu filme. Ele começa e termina com o sacrifício de duas cabras cujo sangue é vertido – por quê? Nada é explicado, mas faz sentido acompanhar esses personagens – essa história – que abarcam tudo. Vida e morte, amor e sexo. É como se a diretora estivesse buscando um sentido para a própria vida.

Há uma cena belíssima em que a morte é precedida por cantos – cânticos –, numa harmonia de elementos que pode se referir a uma dimensão espiritual, mas é também um posicionamento estético, como havia em A Floresta dos Lamentos, outro grande filme da diretora. A vida continua e o mar, cujo mistério profundo desconhecemos, volta à calma. O que é o cinema? Vale perguntar. É Naomi Kawase, com seu deslumbrante Still the Water.

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