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Informante que inspirou filme 'Segredos Oficiais' diz o que a fez expor farsa de conflito no Iraque

Em entrevista exclusiva ao 'Estado', Katharine Gun falou sobre os bastidores do vazamento de um dos documentos mais polêmicos da atualidade

Por Mariane Morisawa
Atualização:

ZURIQUE - Em 2003, o mundo estava na expectativa de uma guerra com o Iraque – Saddam Hussein, diziam, tinha armas de destruição em massa. Katharine Gun era tradutora no Quartel-General de Comunicações do Governo, serviço de inteligência britânico, quando recebeu, como todos os seus colegas, um e-mail da Agência de Segurança Nacional (NSA) americana, pedindo a interceptação de mensagens secretas que pudessem servir para pressionar os países do Conselho de Segurança da ONU a aprovar a guerra. 

Keira Knightleyno filme 'Segredos Oficiais', que estreia hoje, 31, em todo o Brasil Foto: Diamond FIlms/ Divulgação

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Gun resolveu, então, vazar o documento, que acabou nas mãos de Martin Bright, do jornal britânico The Observer. E, claro, sofreu as consequências disso. Essa é a história contada em Segredos Oficiais, de Gavin Hood, que estreia nesta quinta-feira (31) no Brasil, com Keira Knightley no papel de Gun, Matt Smith como Bright e Ralph Fiennes fazendo Ben Emmerson, advogado de Gun.

Em entrevista ao Estado durante o Festival de Zurique, Katharine Gun conta que já desconfiava da justificativa para a guerra desde antes. “Em setembro de 2002, eu fui aos Estados Unidos para uma conferência e visitei uma base naval em San Diego. Eles estavam em plena preparação e descobri que tiravam navios da aposentadoria para ir para o Golfo Pérsico para, nas palavras de um dos militares, ‘chutar o traseiro de uns iraquianos’. Ninguém desloca equipamento e pessoal se não for para usar. A partir dali, comecei a questionar tudo.” 

Para Gun, os momentos mais difíceis foi quando ela viu o e-mail publicado na capa do jornal e quando seu marido, curdo, foi levado pelas autoridades – segundo ela, por razões que não tinham a ver com seu caso, mas com seu status de refugiado. Ver sua história na tela não foi difícil. “Tive 16 anos para processar. Se fosse mais recente, eu não estaria pronta”, conta. Em geral, acredita ter sido muito mais bem tratada do que os 'whistleblowers' americanos, como Chelsea Manning, que foi presa. Gun sofreu o estresse de um processo, mas foi liberada pela justiça britânica. “Todo o mundo foi muito correto, até a imprensa, à exceção de um ou outro veículo mais de direita. Mas quase todo o mundo me apoiou bastante.” 

 

Vazamento

Katharine Gun ponderou muito antes de vazar o documento. “Eles estavam querendo forçar uma guerra, e isso ultrapassava meu limite, porque os iraquianos estavam lá tentando viver sua vida, e de repente tudo ia ser destruído”, diz. Para ela, as motivações dos informantes importam. “Acho que qualquer pessoa que revela informações precisa pensar o que vai revelar.” 

Katharine Gun durante o Festival de Cinema de Londres, em outubro deste ano Foto: Henry Nicholls/ Reuters

Mas Martin Bright acrescenta que, para o jornalista, a razão pela qual alguém está querendo apresentar dados confidenciais não interessa.“Trabalhei com ‘whistleblowers’ de todas as formas e tamanhos e todo tipo de moralidade”, diz. “Para mim, o importante é a pureza dos fatos. Acredito que as coisas tenham de mudar. É muito conveniente para os poderosos que os ‘whistleblowers’ sejam uma exceção, em vez da regra. Deveríamos ir na direção de normalizar essa atitude de acionar o alarme quando algo está errado”, afirma.

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No fim, Katharine Gun estava correta. Não havia armas de destruição em massa, e os governos americano e britânico forçaram uma guerra que se estende até hoje, destruindo o Iraque e contribuindo para desestabilizar ainda mais a região. 

Para Martin Bright, as mentiras contadas pelos governos de George W. Bush e Tony Blair foram a semente para o descrédito nas instituições e a atual situação da política da pós-verdade em que os líderes mentem sistematicamente para o povo. “Todos nos decepcionaram, certamente nos Estados Unidos e no Reino Unido. As instituições que deveriam nos proteger não o fizeram – a ONU saiu enfraquecida, assim como o processo diplomático, os militares, o Congresso, o sistema Judiciário”, afirma o jornalista. 

“Acho que o crescimento do populismo, em certa medida, teve sua origem a partir da Guerra do Iraque.” Até porque, como frisa Gun, ninguém foi punido. “Quem sofreu foi a população do Iraque, os soldados feridos ou com problemas de saúde mental, suas famílias, gente como eu e Chelsea Manning e jornalistas”, diz. “Os membros do governo que fizeram isso foram promovidos. Tony Blair e George W. Bush estão livres, e suas reputações, de certa forma, estão sendo redimidas.” 

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